Um supermercado transformado em abrigo de refugiados

No interior do antigo Tesco, a 12 quilómetros da fronteira com a Ucrânia, há obras a decorrer para poder acolher centenas de foragidos e receber donativos. Na rua oferece-se quase tudo.
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Nunca passou pela cabeça de Przemyslaw que um dia o seu negócio tivesse de mudar. Muito menos ainda ter à volta da loja de telemóveis e comunicações - a única aberta além da farmácia - foragidos de uma guerra. No interior do centro comercial moribundo os corredores estão ocupados com colchões, cobertores, malas e restantes pertences. E pessoas. Ucranianas, velhas e novas, na sua maioria.

Sem quase tirar os olhos do ecrã do computador, este polaco mostra-se resignado, mas não passivo. Hospeda quatro ucranianos em sua casa e ia receber mais seis nas próximas horas. "Tenho amigos do outro lado da fronteira, tenho raízes familiares na Ucrânia", justifica. Mas rejeita que se trate apenas de uma questão de proximidade: "Acima de tudo são seres humanos."

Metros à frente, uma voluntária distribui doces às crianças. Kateryna chegara há meia hora. "Saímos de Kiev na primeira hora em que houve bombardeamentos", conta, sentada junto a brinquedos com os quais a filha Varvara, de 5 anos, se entretém. "Teve muito medo quando ouviu as sirenes, ficou em choque. Como eu." O marido levou-as de automóvel até Lviv, onde aguardaram dois dias. Depois seguiram até ao posto fronteiriço Medyka-Shehiny. A demora de duas horas, tendo em conta a experiência de milhares de outras pessoas, não merece reparos desta gestora de recursos humanos.

O que Kateryna lamenta é não terem dado ouvidos, há um mês, aos avisos dos norte-americanos. Hoje a família podia estar junta. A lei marcial obriga o marido a ficar na Ucrânia, em Lviv, cidade até agora poupada por Moscovo.

O que se diz a uma criança de cinco anos que tem de deixar a casa e o pai para trás? Varvara come guloseimas, mas o discurso não é adocicado. "Disse-lhe que há um grande e antigo problema no nosso país e que a Rússia é um problema para nós, não de agora, mas de há cem anos, e que há um conflito estúpido devido a um agressor."

Kateryna aguarda por uma boleia de amigos que vivem em Varsóvia, onde irá instalar-se. Na rua caem uns tímidos flocos de neve. Há autocarros a partir para Praga, Estocolmo, Copenhaga. Improvisam-se letreiros com informações sobre outros destinos, em viagens gratuitas. Mas há quem tente fazer negócio num centro de acolhimento de refugiados e, a metros de distância, estão estacionados automóveis prontos para serem alugados.

À entrada do parque de estacionamento do antigo supermercado da cadeia norte-americana Tesco amontoam-se as doações. Carrinhos de bebés, calçado, roupa e fraldas numa primeira área. Comida e bebidas depois, e nas traseiras tendas de assistência médica. Ania está de serviço a oferecer bebidas quentes. Ela e os seus colegas da Câmara de Przemyszl saíram dos gabinetes e estão a fazer turnos de oito horas sem parar. "As coisas estão a compor-se aos poucos", comenta. "O antigo supermercado vai ser um grande centro logístico e terá mais lugares para acolher pessoas", diz. De momento as escolas são teto para umas 500 pessoas, além da estação de comboios.

A ajuda aos refugiados também é feita por forasteiros. Maciek e o seu grupo de motociclistas Riders on the Storm chegaram de Bielsko-Biala de madrugada. Percorreram 400 quilómetros para distribuir zurek, tradicional sopa polaca. Têm 200 litros a fumegar e mais preparada para acrescentar. "Vamos partir quando a sopa acabar, mas infelizmente não será a única vez. Em breve voltaremos", garante. Vindos de mais longe ainda, voluntários da organização não governamental Khalsa Aid montaram uma tenda com comida típica indiana. Emrik e mais dois voluntários trouxeram duas carrinhas com o equipamento e comida da Áustria. Outros se juntaram vindos de Londres (a sede desta ONG de raiz sikh) e outros oriundos da Ucrânia. A tenda esteve montada junto à fronteira, mas as autoridades deram indicações para que se agrupasse no centro de acolhimento.

É na estação de comboios de Przemysl - entretanto menos caótica do que há um par de dias - e na fronteira que permanecem mais estrangeiros de outras nacionalidades que não a ucraniana. A uma dúzia de quilómetros de distância, no parque de estacionamento improvisado a uns 300 metros do posto de controlo, uma carrinha de matrícula alemã e porta traseira aberta deixa à vista comida e bebida para quem quiser. Mas mais do que isso: no banco traseiro há três estudantes sentados, a descansar, outros tantos à volta do veículo conduzido por Frank. Ativista como Uschi, vieram da vila de Wustrow, na Baixa Saxónia, com a finalidade de transportar para Berlim estudantes que fugiram da guerra. São sudaneses, somalis, iraquianos, todos previamente identificados a partir de um sudanês a viver em Berlim.

Mohammed Morwan deixou o curso de engenharia biomédica para trás e conta que, depois de uma longa viagem de Karkhiv até Lviv, e daí até à fronteira, estiveram na fila 27 horas, ao frio. Como os outros, não faz ideia do seu futuro. Perguntam se as universidades na Alemanha dão equivalência. "Não sabemos nada", diz o sudanês. Frank e Uschi esperavam mais uma carrinha para, no total, transportarem 12 estudantes. "Está bem oferecerem uma viagem de autocarro e depois um bilhete de comboio. Mas e depois? Não têm dinheiro, não falam polaco e o governo não gosta de pessoas com pele escura", diz a ativista do grupo pacifista Kurve.

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