Um segredo chamado Jacqueline Audry

A Festa do Cinema Francês celebra a memória da mulher realizadora mais produtiva do cinema francês em meados do século XX. Jacqueline Audry, dona de uma obra com predicado feminista, é um nome para (re)descobrir num ciclo em parceria com a Cinemateca.
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No monumental documentário As Mulheres Fazem Cinema, de Mark Cousins, lançado há poucos meses nas salas e editado em DVD, surge uma referência à francesa Jacqueline Audry (1908-1977) ainda nos primeiros capítulos deste "curso" de realização no feminino, que dura 14 horas. Aí, Cousins destaca uma cena do início de Olivia (1951), filme que tem lugar numa escola de raparigas, no século XIX, e põe em contraste a sua ideia de feminilidade, desde logo refletida no cenário e no guarda-roupa vistosos, com a masculinidade contida nos códigos visuais e sonoros de Raparigas de Uniforme (1931), filme alemão da austro-húngara Leontine Sagan, que também se passa num internato feminino. Para o devido contexto, a análise de Cousins é puramente cinematográfica e, através do fragmento, dá a ver a justeza de tom da mise-en-scène de Audry. Mas o que essa mise-en-scène comporta é mais secreto do que a cena, assim desamparada do todo, pode revelar, apesar dos sinais.

Vamos pôr os pontos nos is. O que incentiva a comparação de Olivia com Raparigas de Uniforme é sobretudo a natureza sexual da narrativa: ambos os filmes retratam o universo de internatos femininos onde o desejo entre uma aluna e uma professora ganha contornos evidentes. A diferença, para além dos elementos visuais apontados por Mark Cousins, é que a sugestão lésbica de Olivia - que se ocupa do despertar carnal e sentimental da personagem titular, uma adolescente inglesa recém-chegada a um internato francês - não se desenvolve no ambiente punitivo de Raparigas de Uniforme, esse marcado por uma consciência quase militarista. Olivia, por sua vez, exprime a beleza da transgressão em toda a sua graça, com movimentos de câmara que acompanham a suavidade coreográfica da vivência no interior da escola, e da mulher que a rege, Mademoiselle Julie (Edwige Feuillère), supremo objeto do desejo que desce a escadaria central com a grandeza de uma rainha. Aqui, o melodrama acontece numa espécie de paraíso de elegância exclusivo das mulheres (os pouquíssimos homens que aparecem são filmados de costas ou de perfil, nunca de frente), e a atenção à literatura trabalha nelas as nuances da paixão.

Filme crucial da obra de Jacqueline Audry, Olivia é o título que marca o arranque, nesta sexta-feira, do ciclo dedicado à realizadora que se distinguiu como a única mulher com uma produção regular nos anos 1940-50 (abrangendo ainda a década de 1960) no cinema francês. O ciclo decorrerá na Cinemateca, no âmbito da Festa do Cinema Francês, e a sessão será antecedida de uma conferência de Brigitte Rollet, investigadora e autora do livro Jacqueline Audry: La Femme à la Caméra, que é citada no texto de apresentação do programa, sobre a tendência da cineasta para "um jogo constante com as aparências, os papéis e as identidades, quer se trate da liberdade mantida com os textos adaptados, com os géneros cinematográficos escolhidos ou com a espécie de jogo das escondidas, que é tentador resumir deste modo: estar simultaneamente onde é esperado e frustrar as expectativas".

Com efeito, a obra de Audry ficou muito associada às adaptações literárias, sendo de destacar as várias colaborações com a irmã escritora, Colette Audry, que inclusive assina a adaptação do irreverente Olivia, a partir do romance homónimo de Dorothy Bussy. E também os livros de Colette, a outra escritora mais famosa com esse nome próprio, estão na origem de uma trilogia de adaptações de Audry, de entre as quais o presente ciclo exibirá Minne, L"Ingénue Libertine (1950), para além de Les Malheurs de Sophie (1945), baseado no livro homónimo da Condessa de Ségur, Huis-Clos (1954), segundo a peça de Jean-Paul Sartre que diz que "o inferno são os outros", La Garçonne (1957), que, partindo de um romance de Victor Margueritte, faz o elogio à emancipação feminina (causou escândalo aquando da estreia, à semelhança de Olivia), e L"École des Cocottes (1958), uma comédia "a brincar" ao quê? Às mulheres emancipadas, pois claro, em plena Belle Époque. Estas são provas da habilidade de Jacqueline Audry para os ditos jogos de aparências, filmes - inéditos por cá - que se apresentam com uma roupagem apropriada à sua época, enquanto minam os preceitos a partir de dentro. Ou melhor, como se o requinte das produções servisse uma lógica de "mau comportamento" feminista. Foi, aliás, por essa face dupla, entre o libertino e a chamada qualité française, que o seu cinema nunca caiu nas boas graças da crítica dos anos 1950, nem sequer, mais tarde, no goto da nouvelle vague. A bruma de esquecimento que envolve a obra de Audry deve-se em parte a uma dessincronia com os valores, ora morais ora estéticos, desses tempos, para além de ser uma mulher atrás da câmara... Ela (ainda) é um segredo por descobrir.

dnot@dn.pt

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