Um português na Síria: "Visitar um país não legitima o seu sistema"
Não foi em turismo, mas foi o turismo que o levou à Síria. Entre o fim de março e o início de abril, João Oliveira passou por cidades como Damasco, Saidnaya, Malula, Homs, Tartus, Shahba, Qanawat. Fundador e coordenador da Portugueses em Viagem, agência de viagens e turismo de aventura, tinha previsto realizar a expedição com um grupo de pessoas (o máximo por grupo é de oito viajantes), mas acabou por ir sozinho.
"A expedição à Síria foi anunciada em outubro passado e gerou muito interesse, mas compreensivelmente a maioria das pessoas fica sempre apreensiva antes de avançar para a reserva da viagem. Fomos contactados por pessoas de ambos os sexos, várias idades, a maioria já nossos clientes e conhecedores do rigor e perfil das nossas expedições. Há algumas semanas, com o agudizar da situação em Ghouta e várias bombas a cair no centro de Damasco, cancelámos o grupo e acabei por vir apenas eu para avaliar a situação no terreno e decidir se este projeto era ou não para manter", explicou ao DN, através de e-mail. Sobre Ghouta, um relatório da ONU, de março, acusa o regime de Bashar al-Assad de uso de armas químicas contra os grupos de rebeldes. Situação que ontem parece ter-se repetido na mesma zona, mais propriamente em Douma, segundo denúncias de organizações no terreno como os Capacetes Brancos. O regime sírio, porém, nega.
Apesar da guerra, que começou em 2011 e, desde então, já fez meio milhão de mortos, João Oliveira diz que "o amor ao património comum é dos únicos pontos de concórdia entre todo o povo sírio numa sociedade dilacerada". O português acredita que "todos os sírios gostariam que por exemplo Palmira voltasse a renasce". E conta que a estrada que dá acesso a Palmira ainda não é segura. Classificadas como Património Mundial da Unesco as ruínas de Palmira foram destruídas pelos terroristas do Estado Islâmico em 2016. Dada a ofensiva da coligação internacional e o apoio dos russos e iranianos ao regime do presidente sírio, os islamitas controlam agora menos de 10% do território sírio.
"Em relação à segurança é preciso ter consciência de que a guerra na Síria é um conflito internacional envolvendo várias potências. A guerra é feita pelas muitas fações do conflito também nos media internacionais e nas redes sociais. Foi preciso atravessar várias cortinas de fumo e alguma histeria para vislumbrar com claridade e objetividade os desafios de segurança desta aventura", relata Oliveira, que viaja de forma consistente há mais de 25 anos e diz gostar "de conhecer o mundo sem filtros e na primeira pessoa". E esclarece: "Visitar um país não legitima o seu sistema. Permite conhecer a realidade local na primeira pessoa e abre caminho para a construção de um futuro mais são que começa no único ponto comum a todos os sírios: o orgulho no seu passado".
Mas como explicar que enquanto milhares de pessoas fogem da Síria para a Europa, arriscando a vida no Mediterrâneo, outros viagem em sentido contrário? "Para mim o povo sírio são todos. Os que saíram e os que ficaram. O que mais me impressiona no povo sírio, em Damasco e na Europa, é a determinação em seguir em frente. Seja o estudante universitário em Lisboa que precisa aprender português para acabar o curso e o faz de forma brilhante em poucos meses, ou a guia num museu sírio que na falta do mosaico mais belo esconde uma lágrima e agarra um postal envelhecido esquecido na receção para explicar o tal mosaico como sempre o fez até ao início da guerra. E o faz de forma majestosa. A palavra que define a Síria neste momento é determinação. Esta viagem é sobretudo humana. Se há algo que levarei para sempre na memória é a comoção com que alguns dos meus anfitriões voltaram a partilhar os segredos dos seus museus, monumentos, castelos, ruínas, mesquitas e igrejas. O turismo é e vai ser sempre a indústria da paz. É uma viagem marcante".
João Oliveira frisa: "Não vim em turismo, vim em trabalho, por motivos claros que me parecem nobres e sensatos". Tendo vivido e trabalhado em Cuba, Moçambique, Guiné-Bissau, Guatemala e Holanda e coordenado vários projetos de desenvolvimento, regressou a Portugal em 2012 e fundou então a Portugueses em Viagem. "A expedição à Síria é uma decisão pioneira que leva esperança às vítimas da guerra que não atravessaram o Mediterrâneo. Em algum momento, a Europa terá que decidir se assumir as suas responsabilidades de forma mais ampla no futuro de todos os sírios. Sem uma única Embaixada em Damasco como pode a Europa contribuir para uma solução de paz neste? Vamos deixar a Trump, Putin ou aos extremistas islâmicos a tarefa de salvaguardar os direitos humanos? Talvez agora seja a nossa vez de atravessar o Mediterrâneo e tomar decisões construtivas".