Um pianista de exceção apaixonado por Portugal

Piotr Anderszewski é um artista em destaque na temporada da Gulbenkian. Toca hoje e amanhã no Grande Auditório com a Orquestra Gulbenkian, na primeira de três visitas a Lisboa (onde tem um apartamento) até fevereiro próximo.
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Teve sempre uma personalidade singular e a sua notoriedade começou ao abandonar um recital a meio, no Concurso de Leeds, quando era apontado como potencial vencedor do mesmo. Dessa forma bizarra começou a sua carreira, que nos revelaria uma singular e carismática personalidade pianística. Se é um dos grandes pianistas atuais, é também um pianista "de culto" no circuito. Até fevereiro vamos poder ouvi-lo em três diferentes programas na Gulbenkian: hoje (21.00) e amanhã (19.00), solista com orquestra; a 2 de dezembro, a solo; e a 14 e 15 de fevereiro, como solista e maestro (dirigindo do piano).

No cartaz, hoje, o "Concerto n.º 3" (de 1945), do húngaro Bela Bartók (1881-1945). Sobre o autor diz com desarmante sinceridade: "Nunca tive uma relação de "intimidade" com ele, nem posso dizer que alguma vez estive apaixonado pela sua música. Quero dizer, ele é genial e a qualidade das obras ainda hoje me surpreende, mas não há uma identificação estética, percebe?" Paradoxalmente, afirma que "por vezes até é melhor tocar obras como esta, com as quais não estamos tão envolvidos emocionalmente, porque acho que me sinto mais livre perante elas."

O puzzle do pianista

Reconhecido pela leitura muito pessoal e distintiva que faz de cada obra que toca - e as "Diabelli" são "apenas" um caso típico, conquanto extremo, disso - afirma: "Soar diferente nunca pode ser um objetivo, pois será sempre uma falsidade. A palavra certa para mim é "convincente". Se fores convincente, isso significa que assumiste plenamente a tua diferença - o que é "característico" de ti - no confronto artístico com o compositor e a obra. Significa que o filtraste de forma coerente e honesta através da tua personalidade, da tua sensibilidade e do teu entendimento."

Mas este "input" do Eu é sempre cuidadoso: "A nossa obrigação mais importante é sempre a fidelidade ao texto [a partitura]. E é essa fidelidade que, paradoxalmente, te fará reconhecer a liberdade, por estreita que seja, que o texto te permite e que te "pede" que explores." E nessa exploração, o factor-guia é "o gosto", ou seja, "o conhecimento cultural e a educação estética que originam esse conceito certamente vago, mas que existe indissociável do repertório canónico".

Para completar o "puzzle" de que se faz o pianista Anderszewski, faltam apenas dois "ingredientes" (o termo é dele), que são "fazer a ponte com o nosso tempo, tomando em consideração a "máquina" que hoje tocamos e o tamanho das salas onde tocamos, que nada têm a ver com o tempo dos compositores"; e "acumular conhecimento específico, que deve ser combinado na dose certa com a tua sensibilidade para "cozinhar" a tua interpretação." Em última análise, considera, "o que deve ser celebrado é a riqueza e intemporalidade desta música. É a força, profunda humanidade e poder espiritual que conserva hoje ainda para nós, 200 anos depois de ter sido escrita."

As próximas visitas

Daqui por sete semanas, estará no mesmo palco, mas sozinho, para tocar as "Variações Diabelli" de Beethoven, talvez a obra mais marcante da sua carreira pianística: "O que sempre me fascina nesta obra é como Beethoven leva às últimas consequências, nos limites impostos pela música tonal, o conceito de "transformação" [ou "mutação"] com que ele designou esta obra - não são "variações"! Depois, atravessa-a um fio condutor de uma clareza extraordinária, que nos "explica" toda a miríade de direções que a música toma. Toda a obra é um processo cristalino", afirma ele - e na palavra "processo" reside a chave: "Para mim é fundamental descobri-lo, para que uma obra deste tipo faça sentido para mim. Se não, após a 3.ª ou 4.ª "variação" já estou a pensar: "Mas porque se dá ele ao trabalho de variar mais?" Deixa de fazer sentido para mim, não respondo emocionalmente." Daí que, num "relacionamento" que leva já cerca de 30 anos, as "Diabelli" nunca o cansem: "O fascínio é constante.E por mim podiam ser mais longas [são 33 "variações" e quase uma hora de duração].

Já em fevereiro, vamos vê-lo também a dirigir (do piano): "Comecei a fazer isso já há quase 20 anos, na Polónia, e senti-me logo muito bem. Claro que tens de aprender a lidar com o facto de não poderes obter dos músicos da orquestra aquilo que exiges a ti próprio no piano, mas para uma boa parcela do repertório é o formato que mais me agrada, na verdade." Na Gulbenkian tocará Mozart (Concerto n.º 13) e Beethoven (Concerto n.º 1), mas já experimentou dispensar o maestro em obras mais tardias: "Sim, já toquei o Concerto de Schumann dessa forma e digo-lhe que foi o melhor Schumann que alguma vez toquei."

Piotr e as cidades

Filho de um polaco e de uma húngara, Piotr nasceu e cresceu em Varsóvia e passava os verões na Hungria. Há dois anos, estreou-se como realizador: "Sim, fiz um documentário sobre Varsóvia. Tenho uma relação muito profunda com a cidade e a sua história trágica e senti que tinha de fazer algo onde isso transparecesse. Uma espécie de psicanálise [sorri] - e fez-me bem! Claro que houve pessoas que não se reviram ali, que não reconheceram a sua cidade, mas lá está: é uma visão estritamente pessoal, é o meu olhar, a minha lente." O "modus operandi" foi simples: "Tudo quanto filmei mostra a cidade, sem personagens, sem argumento. O que "faz" o filme é o ritmo das imagens e a banda sonora". Esta é formada por "música, claro - muito Chopin -, mais os ruídos da cidade - os dois por vezes misturando-se - e momentos de silêncio."

Também com Lisboa o pianista desenvolveu uma relação especial, tanto assim que já há vários anos possui um apartamento no Bairro Alto, mas mostra algum desencanto: "Estou muito desiludido com o que se passa nesta cidade. Se calhar eu nem me devia queixar, mas não me apetece estar rodeado de alojamentos locais e hotéis por todo o lado. Não me apetece estar sempre a ouvir falar francês [ele viveu bastantes anos em Paris]!" Para o artista, "há o risco de Lisboa se tornar um grande parque temático, como Praga", embora admita que "os portugueses arranjarão forma de resistir e travar este processo." Na origem, para ele, Lisboa terá sido uma "fuga" e há sempre algo de fuga quando fala de outros locais em Portugal: "Tenho ido muito aos Açores nos últimos anos e agrada-me muito. Se calhar devia-me mudar para lá... [risos]"; ou quando fala de um certo Algarve: "Gosto de alguns sítios, como Tavira, que se mantêm preservados e onde de repente tenho a impressão de, aí sim, estar no Portugal autêntico."; ou ainda quando fala do Alentejo como "um escape" e enumera os seus périplos: "Já andei por Mourão, Monsaraz, Estremoz, Vila Viçosa... Évora, claro".

É o mesmo lado de solitário que o leva a dizer: "Nunca quis ter alunos" ou a reconhecer que "só raramente dou masterclasses". Embora aqui opere também aquela sinceridade que referíamos no início: "Sabe, não tenho ideias claras o suficiente sobre demasiadas obras para pretender "passá-las" aos alunos..." Mas há uma exceção: "Se o tema fôr os concertos de Mozart, aí tudo bem!", diz o pianista que sem hesitar afirmara já, durante a nossa conversa, que "o Concerto em dó menor [n.º 24] de Mozart não é só o mais belo dele, é o mais belo de todo o repertório - e logo "abaixo" vem o n.º 27." Sorte a nossa: ele já gravou ambos.

Concerto

Solista: Piotr Anderszewski (piano)

Orquestra Gulbenkian/David Zinman

Obras de Bartók, Kodály e R. Strauss

Grande Auditório FCG, hoje (21.00) e amanhã (19.00)

bilhetes dos 15 aos 30 euros

tags: música clássica, concerto, piano, Fundação Gulbenkian, Piotr Anderszewski, David Zinman, Orquestra Gulbenkian

Bernardo Mariano

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