Um lobo mau chamado Isabelle Huppert
Uma mala. Tudo começa por uma elegante mala de senhora abandonada numa carruagem do metro de Nova Iorque. Frances (Cloë Grace Moretz), uma jovem recentemente mudada de Boston para a grande metrópole, encontra-a e, na sua genuína boa vontade, decide entregá-la à pessoa que vê no bilhete de identidade, apesar de a sua companheira de casa insistir que quando se encontra alguma coisa naquela cidade o que há a fazer é simplesmente guardar para si essa coisa. Ainda mais quando existe um maço de dólares para usufruir... Porém, se ela não tivesse mantido a sua intenção de entregar a dita mala - ou, por outras palavras, se o rato não tivesse trincado o queijo na ratoeira -, é certo, não tínhamos filme.
Ao fazê-lo, quem a recebe do outro lado da porta é uma sorridente viúva de sotaque francês, Greta, que faz questão de agradecer o gesto amável com uma chávena de chá e dois dedos de conversa. Aqui já estamos a entrar descaradamente no território pernicioso de Isabelle Huppert, um lobo mau mascarado de avozinha chique, que desperta a simpatia da jovem ao revelar-se uma mulher solitária que passa o tempo a tocar o Sonho de Amor de Liszt ao piano e mal sabe mexer no telemóvel para registar um contacto. Por seu lado, Frances, sem mãe e com uma rotina que só inclui o trabalho de empregada de mesa, também se sente sozinha nesta fase da sua vida e rapidamente se dedica à amizade da carente senhora. Isto até ao dia em que descobre que afinal foi apanhada na armadilha de uma psicopata e stalker, passando a ser assombrada por ela no mínimo dos seus movimentos quotidianos...
Para apresentar este cenário, entre tons de atmosfera negra e drama cor-de-rosa, Neil Jordan não perde tempo com preciosismos e põe o filme sobre rodas através de clichés do noir e do terror trabalhados, com desenvoltura, até ao ponto da comédia. E neste andamento resoluto, Greta - Viúva Solitária não podia tirar mais partido da arma letal que é a presença de Huppert, aqui a transformar o seu tão reconhecido registo feminino depravado numa jocosa caricatura - não é por acaso que, num ou noutro momento, se vislumbram os traços comuns e referências das suas personagens de, por exemplo, A Cerimónia, Merci pour le chocolat, A Pianista ou Ela. Como se a ideia fosse celebrá-la por via de uma brincadeira em torno do seu carisma cinematográfico. Pois que ainda há atrizes que obrigam a câmara a uma vénia.
E, para que conste, não temos dúvidas de que Huppert se divertiu imenso. Toda a nossa perceção assenta nesse evidente deleite da protagonista, que dança (a certa altura, de modo literal) em bicos de pés enquanto desfia a malvadez cena a cena. Da mesma forma, não temos dúvidas de que o realizador de Entrevista com o Vampiro se limitou a explorar o magnetismo da veterana francesa num intuito puramente provocador, sem pretender uma relevância sequer semelhante à colaboração dela com o holandês Paul Verhoeven (Ela). Não é disso que se trata. E por tal ausência de afetação, Greta acaba por ser um fim em si mesmo: um recreio para Isabelle Huppert, que, sem conter nada de memorável, nos regala o espírito durante pouco mais de hora e meia. Um prazer prêt-à-porter, sem remorsos.
** Com interesse