Nestes tempos em que o prazer das palavras tende a ser esmagado pela velocidade dos "soundbytes" políticos e mediáticos, não é todos os dias que podemos encontrar um livro com um título serenamente poético: Descasco as imagens e entrego-as na boca. Assim mesmo. Não é um livro de poesia, mas fala de um poeta: António Reis (1927-1991), também realizador, também professor de cinema. Algo esquecido, sem dúvida, pelo que o primeiro mérito desta publicação é o de nos devolver a riqueza e complexidade de uma personalidade fascinante..O título provém, justamente, da poesia de Reis, mas o conteúdo tem a ver com a sua atividade como professor na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), entre 1977 e 1991. Em outubro de 2018, durante a abertura do ano letivo, aquele estabelecimento de ensino promoveu uma homenagem marcada, antes do mais, pelo legado que deixou na escola, cruzando a precisão das palavras e a paixão das imagens com uma obstinada exigência humanista. O livro é uma antologia de textos dessa homenagem (ed. Documenta) em que foram projetadas cópias restauradas pela Cinemateca Portuguesa dos filmes Jaime (1974) e Trás-os-Montes (1976)..Não creio que seja possível falar daquele legado de forma objetiva, banalmente "descritiva". No meu caso, além de dar aulas na ESTC, não posso esconder que não sei escrever sobre os filmes que Reis assinou com Margarida Cordeiro - a começar por esse obra central na modernidade portuguesa que é Trás-os-Montes - sem sentir que a minha visão se envolve com uma fortíssima memória afetiva..Creio mesmo que faz sentido dizer que, para lá da pertinência argumentativa e da qualidade teórica das comunicações apresentadas, a cumplicidade afetiva com a memória de Reis foi um dado fundamental das quatro sessões da homenagem. A começar pela intervenção de Maria Filomena Molder sobre Jaime, expondo a viagem intimista dessa curta-metragem através dos desenhos de Jaime Fernandes, camponês da Beira Baixa que, sofrendo de uma forma aguda de esquizofrenia, viveu as últimas décadas da sua existência internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa..O livro inclui ainda ensaios de Nuno Júdice (analisando "uma poesia próxima da vida"), Manuel Guerra (narrando um processo de descoberta dos poemas de Reis) e José Bogalheiro (percorrendo o labirinto criativo do professor e realizador). Destes autores, os dois últimos são responsáveis pela organização editorial do volume que apresenta como subtítulo a designação dada à própria homenagem: "Lições António Reis"..Há também um perfil do homenageado, escrito por Fátima Ribeiro, sua aluna, atualmente docente na ESTC. Maria Patrão, aluna do 3º ano, na área de Montagem, apresenta um trabalho de investigação executado a partir de um conjunto de imagens (slides), concebidas pelo próprio António Reis e executadas pelos seus alunos. São, enfim, contributos preciosos para o conhecimento, porventura a redescoberta, de um nome fundamental na história moderna do cinema português.