Um dia após depoimento de Lula, Brasil acorda mais dividido
"A sua hora chegou, corrupto", lia-se às primeiras horas da manhã de ontem no portão do instituto que leva o nome do ex-presidente do Brasil, Lula da Silva. Momentos depois, apoiantes do líder histórico do Partido dos Trabalhadores (PT) cobriram as inscrições com um graffito ilustrando militantes do partido, de camisa encarnada e punhos erguidos. O dia seguinte ao depoimento forçado de Lula na esquadra da Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas no âmbito da operação Lava-Jato foi marcado por episódios de radicalização entre os que apoiam o governo petista e o antigo sindicalista e os que desejam a sua prisão e o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Horas mais tarde, a poucas dezenas de quilómetros da sede do instituto que leva o seu nome, Lula decidiu descer do seu apartamento em São Bernardo do Campo, cidade dos arredores de São Paulo, para abraçar as cerca de 300 pessoas, segundo os números da polícia, que desde a madrugada se manifestavam contra a condução coercitiva, ou seja, o depoimento forçado do antecessor de Dilma na manhã de sexta-feira. Os cânticos "Lula é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo" e "não vai ter golpe" serviam de banda sonora aos emocionados abraços que o ex-presidente ia distribuindo. "Só não posso discursar, meus amigos, porque há um hospital aqui perto de casa", gritou Lula.
[citacao:Lula é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo]
A partir do início da tarde, manifestantes em sentido contrário ameaçaram juntar-se no local. Mas a modelo Lu Isen, que ficou conhecida por se despir da cintura para cima durante os protestos pelo impeachment, foi alvo de uma garrafa vazia e afastou-se, acompanhada dos seguranças pessoais. Em simultâneo, as forças policiais aumentaram o número de agentes no local.
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Na sequência, Dilma Rousseff aterrou de helicóptero num campo de futebol vizinho ao apartamento de Lula e foi ao encontro do seu padrinho político. Sem falar à imprensa e apressada por estar em trânsito para Porto Alegre, cidade onde vivem a filha e os netos, a presidente abraçou-se a Lula e à mulher deste, Marisa Letícia, na varanda da residência, sob aplausos dos populares, na sua maioria militantes do PT, sindicalistas e membros dos movimentos sociais que apoiam o governo. Enquanto as imagens passavam em direto nas televisões, ensaiaram-se panelaços, isto é, protestos de cidadãos contrários ao executivo batendo panelas, em certos pontos do país.
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"O episódio da condução coercitiva tende a tornar os movimentos de rua potencialmente mais radicalizados com a possibilidade, até mesmo, de enfrentamento", disse o cientista político Cláudio Couto ao jornal O Estado de S. Paulo. Outro cientista político, André Singer, usou a sua coluna no jornal Folha de S. Paulo para chamar ao período em curso "a mãe de todas as batalhas" entre poder e oposição.
Em causa, a semana em que foi detido João Santana, publicitário responsável pelas três últimas campanhas vitoriosas do PT; em que se ficou a saber pela imprensa que no seu depoimento à Lava-Jato o senador petista Delcídio do Amaral envolveu Lula e Dilma no esquema; e em que foi exigida a presença forçada do ex-presidente numa esquadra por decisão de Sérgio Moro, juiz que conduz as investigações do escândalo da Petrobras. "Sérgio Moro sabia o que se produziria se autorizasse o que autorizou: era óbvio que haveria uma repercussão mediática nacional e internacional equivalente à da prisão de uma celebridade e era esse efeito imagético que buscava", acusou André Singer.
O próprio Moro, cuja decisão de obrigar Lula a depor foi criticada do ponto de vista técnico por juristas ouvidos pela imprensa, abandonou a tradicional discrição e explicou-se durante a tarde de ontem. "A condução coercitiva e as medidas de busca e apreensão não significam antecipação de culpa", disse, antes de repudiar os episódios de violência que se seguiram. "Manifestações políticas inflamadas com agressões a inocentes era tudo o que se pretendia evitar", continuou, através de comunicado. O juiz justificou a condução coercitiva porque, se Lula fosse convocado com antecedência, os incidentes poderiam ser maiores.
Protestos em 150 cidades
A semana de tensão na Lava-Jato precede as manifestações marcadas para mais de 150 cidades do país no próximo domingo a favor do impeachment e contra o PT. Lula, por seu lado, convocou os movimentos sociais que defendem o governo "para a luta". Em discurso ao fim da noite de sexta-feira, o ex-presidente disse que estava "sossegadinho" no seu canto mas que foi desafiado, deixando verbalizada a intenção, há muito tempo conhecida, de se candidatar ao Palácio do Planalto nas eleições de 2018.
Lula é suspeito, segundo as investigações da Lava-Jato, de ser um dos beneficiados do esquema de corrupção da Petrobras, envolvendo construtoras que ganhavam concursos de licitação de obras, em troca de subornos a políticos influentes e a quadros da petrolífera estatal. Em causa, obras de melhoramento em apartamentos de praia e de campo de que o ex-presidente e a família usufruíam e pagamento de palestras por parte das empreiteiras que fraudaram a empresa.
Em São Paulo