Um Costa Silva social, já
Depois do documento de António Costa Silva temos uma visão do rumo estratégico da economia portuguesa. Mas falta-nos ainda essa visão para o modelo social da próxima década.
As grandes crises são momentos privilegiados para inflexões históricas. Ainda a II Guerra Mundial tinha muita batalha para travar, já Lord Beveridge redigia o Relatório de reformulação radical da política social que deu, entre outras grandes mudanças, origem ao serviço nacional de saúde britânico. Um pouco por toda a Europa democrática a década do pós-guerra foi a do redesenho dos sistemas de proteção social, aumentando os riscos cobertos, universalizando serviços, estendendo a responsabilidade do Estado na habitação, na educação, na saúde e na proteção dos rendimentos.
A crise que enfrentamos não é comparável no grau de destruição a uma guerra, mas é um abalo profundo nas estruturas sociais sobre as quais construímos os nossos modelos económico e social. Portugal vai perder este ano 10% da riqueza que produz e um potencial de produção adicional que vai causar problemas durante vários anos.
Se a visão estratégica adotada nos permite ter a esperança que a recuperação económica no prazo de uma década será sustentada, ambientalmente sustentável e assente em infraestruturas modernas e inovação tecnológica, continuamos sem saber o que faremos para produzir uma sociedade com menor desigualdade social, menor vulnerabilidade à pobreza e maior capacidade de resposta a novos riscos sociais e problemas emergentes.
No imediato, as medidas de emergência devidamente ponderadas e avaliadas continuarão provavelmente a ser necessárias. Anuncia-se a propósito do próximo Orçamento de Estado uma inovação com a criação de uma nova prestação social para desempregados indexada à linha de pobreza, que é um primeiro sinal de um novo compromisso para a contenção da pobreza e diminuição da sua severidade. Mas vai ser preciso repensar radicalmente as funções sociais do Estado.
A área mais esquecida de todas, neste domínio, a da habitação, tem que ser totalmente redesenhada, rompendo com a ideia de que é possível combinar uma aspiração a habitação própria universal com preços acessíveis às classes médias e sobretudo aos trabalhadores de mais baixos rendimentos.
Muito provavelmente vamos ter que conviver com índices elevados de desemprego, primeiro por força da crise económica, depois por força da aceleração da transição digital e da mudança para um modelo mais intensivo em conhecimento. As políticas de combate ao desemprego têm que ser, como se percebe que está a ser preparado, muito mais eficazes na contenção do nosso escandaloso risco de pobreza dos desempregados. Mas não podem limitar-se a esse objetivo, porque o sofrimento social da privação de emprego se estende muito além da perda de rendimentos, cria uma situação de perda de estatuto social e de sentido para a vida.
O combate ao desemprego tem que revitalizar uma política social de emprego que foi atirada fora há muito tempo, embora tenha tido alguma afirmação entre a segunda metade dos anos oitenta e o fim da década de noventa do século passado. Essa política não pode deixar de estar ligada à revalorização dos rendimentos e do estatuto dos profissionais de serviços sociais, à requalificação de trabalhadores com baixa escolaridade e baixas competências profissionais e à manutenção de uma relação das pessoas com uma atividade que entendem como sendo pessoalmente significativa, socialmente útil e proporcionadora de uma vida digna. Há muitas soluções para estudar, dos mercados de trabalho de transição às atividades socialmente úteis ou à valorização da utilidade social do tempo dedicado à vida coletiva.
Vamos ainda ter que responder de modo massivo a fragilidades que detetámos nas políticas sociais atuais. Tem-se falado muito e muito há a fazer nos cuidados de longo prazo. A crise deixou claro que é preciso voltar a investir no serviço nacional de saúde. Mas é também o tempo da universalidade de creches acessíveis e do desenvolvimento de garantias de serviços públicos de qualidade em vários domínios.
Perante a magnitude do desafio, pode seguir-se o caminho que se desenha, de cada setor desenhar uma ou mais medidas inovadoras, como estamos a ver na política de habitação ou na prestação social contra a pobreza. Mas se não tivermos uma nova visão de conjunto das políticas a desenvolver há grandes riscos de criarmos novas respostas aos solavancos , com reduzido sentido estratégico. Para não ser assim, é necessária e urgente uma visão de conjunto para a coesão social que ainda nos falta. Arranjem um Costa Silva social, já.