Um brasileiro e um português entram num bar e nem a Madonna escapa
"Vocês têm um problema muito sério com as vogais. Estão que nem o governo espanhol com a Catalunha, não reconhecem a existência delas". Eis uma das observações que um brasileiro, Gregório Duvivier, 31 anos, pode trazer para uma conversa com um português, Ricardo Araújo Pereira, 43 anos, na conversa que os juntou no Folio, ontem, ao fim do dia.
Uma hora, e pouco, de pingue-pongue humorístico deste e do outro lado do Atlântico, à boleia dos dois mais recentes livros de ambos. A compilação de crónicas Reacionário com dois Cês, de Ricardo Araújo Pereira, e Sonetos, de Gregório Duvivier, onde a métrica é usada ao serviço de temais atuais. Onde amanhã rima com Instagram e a linguagem é explícita a partir da primeira página.
"O soneto é uma forma que, por ser clássico, fica especialmente engraçado você falar besteiras com ele", defende o humorista. "Sempre achei graça falar dos temas mais ralos da forma mais culta. A graça, se é que tem, vem dessa tensão", diz Gregório Duvivier, desafiado por Bárbara Bulhosa, editora da Tinta da China, a lançar este livro que, para já, só existe em Portugal.
Gregório Duvivier notou o cansaço dos portugueses de Madonna. "Há três anos que venho para cá direto ["muitas vezes", tradução de Bárbara Bulhosa, moderadora do debate] e é impressionante como os portugueses estão fartos da Madonna". "O que eu gosto é vocês são hipsters. Ah, prefiro isto sem ninguém, aumentou o meu IMI, porque tenho vista para Madonna."
Duvivier e Ricardo Araújo Pereira já tinham abordado as diferenças entre português de Portugal e Brasil num anterior encontro. "Eu adoro falar disso porque acho muito engraçado a maneira como lidamos com ela." Há o tal problema das vogais. "Parece que uma pessoa sentou no teclado".
"É muito difícil amar em português de Portugal", admitiu Ricardo Araújo Pereira, queixando-se do oposto. "Abrem demais, também. Algum decoro. Há um desencontro. Nos momentos em que a gente abre, eles fecham. Bebé. Bebê. Cocó. Cocô."
Gregório Duvivier escreve há oito anos, Ricardo Araújo Pereira há 17. "Mudou alguma coisa nos condicionamentos para vocês escreverem. Há textos que vocês escreveram que hoje escreveriam na mesma?" "Eu tenho pavor quando começo a ver tuites meus, eu era um imbecil completo e na merda da Internet está lá eternizado. Aquilo vai ficar para sempre. A gente fala "escrito em pedra", mas se eu escrever no Twitter então é uma maneira de estar lá para sempre. As pessoas fazem questão de me dar prints e me mostrar", refere. Ativista político, mais forte nos últimos anos e notória desde que Michel Temer tomou o lugar de presidente do Brasil. "Tem um perigo muito grande quando a gente começa a escrever para aqueles que nos amam, mas também tem um perigo grande quando a gente começa a escrever para aqueles que nos odeiam. Para irritar os que já nos odeiam. É tentador, porque é uma delícia, mas não vale a pena, porque você fica chato, repetitivo, irritante. Tento não pensar de mais, porque o que mais gosto no humor une as pessoas".
A presença de Ricardo Araújo Pereira no Folio, pela segunda vez nesta edição, começou com autógrafos na Casa da Tinta da China, um dos pontos de paragem do Folio dentro das muralhas de Óbidos.
Pela vila literária
Amarelas, circulares ou retangulares, amarelas, não demasiado ostensivas, as placas indicam o caminho para os muitos lugares onde os escritores conversam na vila, literária de Óbidos.
Pode ser um jogo de pistas, no meio de turistas estrangeiros, de "beba a ginja como o copo" e souvenirs. Distinguir, entre a multidão quem vem ao Folio pode ser uma missão difícil, mas, está dito, sigam-se as indicações. Pelas 16.30, ao mesmo tempo Edgar Pêra fala de cinema no Jardim do Solar, dentro da tenda, protegido por uma oliveira, Afonso Cruz, escritor e ilustrador, alguém que "trabalha com a imaginação", a galeria Nova Ogiva fala sobre ficção e cerâmica, e a colaboração com o Laboratório de Histórias, de Rute Rosa e Sérgio Vieira, criadores de peças de cerâmica que vão encontro de uma certa memória portuguesa (e de Bordallo Pinheiro), agregando outros materiais. Foi assim que nasceu Medusa - manjerico/ animal a que não faltava um vaso de barro, uma flor de papel.
Estamos na Galeria Nova Ogiva, uma das várias livrarias que José Pinho, fundador da Ler Devagar, abriu em Óbidos, um ano antes do Folio - Festival Internacional Literário de Óbidos nascido. Locais como o mercado, a escola ou a igreja de Santiago, hoje Livraria Santiago. Ou, segundo Gregório Duviviver. "Um sítio onde antes só se podia ler um livro, agora tem mil". O Folio encerra hoje.