Ultrapassar o tédio
A identidade europeia tem história longa, designadamente até à certeza de que Camões tinha de ser Portugal "cabeça da Europa toda". A dificuldade, também secular, foi a de organizar uma forma de governança dessa identidade, sempre afetada por conflitos que tiveram o seu ponto mais severo na Segunda Guerra Mundial.
Talvez tenha sido Jacques Delors quem tenha formulado, com melhor sentido da circunstância, a definição da governança necessária, ao falar de uma "federação de Estados-nação". Isto para uma época na qual a caracterização da realidade multiplicou as qualificações da "nossa época", longa na averiguação de Berzun, que a terminou usando a expressão "época das expectativas absurdas".
Depois da catástrofe mundial da guerra, foi necessário o cerca de meio século de guerra fria para fortalecer o propósito de viabilizar a utopia animadora da ONU para implantar a efetiva observância da visão da "terra casa comum dos homens", um trajeto que de novo dá mostras de embaraços, incluindo as insuficiências financeiras da ONU, o panorama de conflitos armados, dos massacres políticos internos em vários países, da degradação ambiental, do renascimento dos mitos raciais. O uso da palavra "federação", na expressão de Delors não se referia à repetição de modelos em vigor, por exemplo o dos EUA, mas apelava à criatividade para um futuro que salvaguardasse em paz a identidade cultural europeia, e uma função construtiva na globalização desafiante.
Foram notáveis os líderes políticos que iniciaram o processo, mas o atual Brexit do Reino Unido faz recordar com intensidade que o passado exige atenção, e que neste caso o projeto político pode reencontrar as objeções que impuseram procurar a coincidência entre identidade e dimensão e forma da governança. A ativa visão de De Gaulle em relação ao Reino Unido, fiel à Cruz de Lorena que Churchill considerou um dos pesos que suportou durante a guerra, não pode deixar de ser lembrada vista a longa e dolorosa negociação para o Brexit, e agora com visão insegura quanto à unidade futura do próprio Reino Unido, e quanto à definição futura das normas de convívio.
A firmeza da União perante a confusão política do Reino Unido parece oferecer segurança europeia quanto à necessária metodologia da cooperação, numa circunstância em que nenhum Estado pode responder unilateralmente aos desafios atuais, incluindo os ambientais. Este multilateralismo está no tratado por que se rege, em que o artigo 21 define como objetivo "procurar um sistema internacional fundado sobre uma cooperação multilateral reforçada e uma boa governança mundial".
E quanto à paz e segurança, Federica Mogherini, alta-representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, declarou recentemente: "Encorajamos uma governança mundial renovada, que esteja à altura de responder aos desafios do século XXI". Não se trata da ambição antiga de "ser a luz do mundo", mas de ter uma intervenção prestante e honrosa na referida governança. É evidente que esta, como foi já caracterizada, continua "heterogénica, multipolar e complexa", dominada pelo enfrentamento entre os EUA e a China, com a solidariedade atlântica enfraquecida, sobretudo pela impossível racionalização da atual presidência do primeiro. E por isso aparece como um risco para os propósitos da União, que se vê obrigada a praticar que a porta de saída é mais difícil de transpor do que a porta de entrada, verificando que os factos parecem acompanhar mais a memória gaullista do que as exigências da circunstância tão exigente de solidariedades, que coloquem a cooperação acima do unilateralismo.
Entretanto a evidente crise de identidade dos partidos fundadores da União, a multiplicação das formações embrionárias sem expressão, e sobretudo a dimensão das abstenções do eleitorado europeu, alertam para o desastre da relação entre a cidadania ativa europeia e a estrutura governativa, que parece afetada pelo tédio. Uma doença que exige uma rápida intervenção de vozes que sejam tão mobilizadoras como foram as dos fundadores. Sobretudo porque o tédio tem o efeito de contribuir para o crescente abandono pelo multilateralismo, quando os factos tornam evidente que não é fácil encontrar um Estado que possa responder isolado às agressões do ambiente.
É difícil que a ONU possa definir o que resta do multilateralismo, mas entretanto não é o tédio que consegue efeitos pacificadores, é a exigência da capacidade de repor o multilateralismo que evitará o próprio risco da violação da paz. A União Europeia, finda a prática da rutura amigável do Brexit, não evitará ter presente que as críticas admitem que "os ventos mais favoráveis são para os Donald Trump, Matteo Salvini ou Boris Johnson".