Ucrânia? Perda de influência nos sindicatos e câmaras é pior para o PCP

A crise "estrutural" no último dos resistentes dos partidos comunistas europeus analisada por três especialistas. Nem a Ucrânia nem os piores resultados eleitorais de sempre ditarão o "fim" do PCP: "Não é um mero partido, é uma comunidade."
Publicado a
Atualizado a

O que explica um comportamento eleitoral em queda? É estrutural ou momentâneo? Pode a questão Ucrânia ter consequências? Como se diferencia o voto no PCP dos restantes partidos?

O que se constata é que, em eleições autárquicas e legislativas, a vida eleitoral de 46 anos do PCP parece ter entrado num terceiro ciclo.

Nas legislativas, é percetível um primeiro ciclo eleitoral entre 1976 e 1987. São os anos em que o PCP oscila entre os quase 700 mil e os quase 1 milhão e 300 mil votos e em que o número médio de deputados é de 40. É nas eleições de 1976 a 1983 que o PCP atinge os seus máximos eleitorais chegando em 1979 aos 47 eleitos.

A entrada no segundo ciclo acontece em 1991 [o PCP cai nesse ano dos 31 eleitos nas legislativas de 1987 para os 17 deputados] e prolonga-se até 2019. Nas eleições de 2002, o partido desce para os 12 deputados, mas a partir daí vai somando a cada eleição - e foram quatro: 2005, 2009, 2011 e 2015 -, mais um deputado até em que em 2019 volta ao patamar de 2002 caindo dos 17 para os 12 eleitos. Durante estes anos, o número de votos oscila entre os mais de 500 mil de 1991 e os 332 mil de 2019.

O terceiro ciclo eleitoral, ou o que parece ser, aconteceu a 30 de janeiro deste ano. O PCP só elege seis deputados e não chega aos 240 mil votos. São os piores resultados eleitorais de sempre do partido em legislativas.

Nas eleições autárquicas, o fenómeno dos três ciclos repete-se. Há um primeiro de 1976 a 1997, um segundo, mais curto, de 2001 a 2017 e um terceiro que parece ter-se iniciado a 26 de setembro do ano passado.

No primeiro, durante sete eleições, o PCP consegue uma média de 47 autarquias. O seu máximo acontece em 1982 quando chega à liderança de 55 câmaras.

O segundo ciclo, de cinco eleições, acontece em 2001 quando o PCP cai das 41 para as 28 autarquias. Há depois um tempo eleitoral de sobe e desce - o partido consegue mesmo 34 câmaras em 2013 -, que termina após as eleições autárquicas de 2017, que encerra a média de 29 municípios.

Em 2021, o partido chega ao seu pior resultado de sempre: 19 câmaras conquistadas.

"O problema dos ciclos do PCP é que há uns que são estruturais e outros que são conjunturais", mas este "último", considera Pacheco Pereira "é estrutural. Nas autárquicas, por exemplo, as perdas atuais são muito significativas em lugares muito relevantes, quer no Alentejo quer na margem sul. Há de facto uma erosão eleitoral muito significativa no PCP que eu penso ser estrutural e que é agravada agora com a questão da Ucrânia".

"E não é um problema de cassete, as pessoas reduzem o problema a isso, mas não é um problema de cassete: é um problema de usura das palavras, do desgaste das palavras. E que agora é acelerado com esta questão da Ucrânia, que é efetivamente um drama para o PCP. Até porque não é líquido que os militantes, para além do núcleo duro, não estejam descontentes, não tenham simpatia pela Ucrânia", sustenta.

Mas, alerta o historiador, "a força política de um partido não se mede apenas pelos resultados eleitorais, particularmente num partido como o PCP. A parte parlamentar, digamos assim, e a força eleitoral não têm o mesmo papel no PSD ou PS que têm no Partido Comunista. Este é um partido em que é muito mais relevante, às vezes, a crise nos sindicatos ou a crise em autarquias, que são simbólicas. E aqui, sim, estamos perante um fenómeno que vai ao âmago do poder e da influência do PCP".

Outro aviso, para melhor entender do que se fala, é a ideia decisiva de que "o PCP não é um mero partido político, é uma comunidade. Há um fator comunitário que é muito relevante. E é, por isso, que eles podem dizer que o partido não se mede apenas pelos resultados eleitorais. Num certo sentido isso é verdade. Eles sentem isso, nós não. Nós estamos de fora e não vemos. As pessoas também têm que perceber que há ali uma ecologia que não é a nossa. É uma ecologia de amizade, de clube, há esse o fator comunitário importante entre os mais velhos e entre os mais novos".

Em resposta às questões colocadas, o PCP divide a resposta em duas ideias; a primeira é de que "o voto na CDU, coligação que o PCP integra com o PEV, reflete o compromisso primeiro com os trabalhadores e o povo português e com os seus interesses. O voto nas candidaturas que o PCP integra é em si mesmo um compromisso com o projeto que apresentamos, a política patriótica e de esquerda"; a segunda explica, no entender do partido, a queda eleitoral já que "para os resultados eleitorais contribuem fatores objetivos e subjetivos, e elementos que são introduzidos no debate eleitoral que inevitavelmente os condicionam, de que é exemplo, entre outros, a recorrente bipolarização artificial".

Marco Lisi, professor Auxiliar no Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, considera que a questão da Ucrânia "talvez possa vir ter influência a nível nacional, nas legislativas. É um tema que poderá contribuir, apesar de não ser decisivo, para a tendência de queda. Mas pode pesar nos eleitores de Esquerda que ainda olham para o PCP como alternativa ao PS ou ao BE. Não, claro, para os mais velhos, digamos mais ortodoxos, mas para os mais novos, principalmente os dos centros urbanos. Agora, esse efeito já não será tão forte a nível local, nas autárquicas".

Mais importante, considera, é a "incapacidade do PCP de politizar novos temas, de acompanhar novas temáticas e a capacidade de competir com novos atores que têm vindo a surgir na ultima década: BE, PAN e Livre, por exemplo. Diria que há dinâmicas de longo prazo como a questão demográfica e fatores conjunturais e de curto prazo como o não saber resolver a questão de haver mais oferta política. As de longo prazo estão ligadas há não substituição de eleitores mais velhos por mais novos. O núcleo duro é mais reduzido até mesmo nos sindicalizados devido à crise no mundo sindical. É, por isso, estrutural porque afeta os dois pilares fundamentais do PCP: o poder local e os sindicatos".

António Costa Pinto, investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais e professor convidado no ISCTE, também considera haver "algo de estrutural" nas descidas eleitorais - "talvez futuramente agravadas com a questão da Ucrânia"- apesar dos "picos de exceção" porque a partir do "final da consolidação democrática e com o fim da guerra fria o PCP entrou num declínio eleitoral progressivo."

Para o cientista político, "não se trata apenas de uma dinâmica de declínio eleitoral, nota-se também uma cada vez menor capacidade de implantação em setores intelectuais, em setores mais associados, por exemplo, às profissões científicas. E é preciso perceber que o BE se transformou, a dada altura, numa plataforma de atração para novos setores não apenas do eleitorado, mas também de elites e à custa do PCP. E não é uma perda, o BE não os retira: é porque os vai recrutar onde o PCP poderia crescer".

Porém, há um fenómeno de "resistência política" a ter em consideração. O PCP "é o último dos resistentes dos partidos comunistas europeus. E aquilo que os fez, faz, sobreviver é continuaram a ser um partido comunista, terem uma implantação local consolidada, terem uma estratégia de implantação que os colocou como políticos simultaneamente honestos e progressistas. E, também, o facto de terem uma implantação sindical que os aproximava, agora muito menos, da estrutura da sociedade portuguesa".

"Tem muito a ver com a composição social do país", explica Pacheco Pereira. "Os sítios onde os partidos comunistas resistiram melhor foi onde não eram uma mera emanação da União Soviética. Os que resistiram melhor foi em sítios, tal como Portugal, onde a estrutura económica e social do país fazia com que uma parte quer da classe operária quer dos trabalhadores de serviços não encontrassem outro mecanismo de representação se não fosse o partido comunista".

E isso aconteceu, claramente, com o PCP, que "através das autarquias, por exemplo, onde eles foram únicos a manter um certo nível de vida a pessoas que não tinham nada a que se agarrar. E isso de alguma maneira também aconteceu na antiga Cintura Industrial de Lisboa e na Margem Sul e acontece agora com os reformados. São setores que entraram em simbiose, no passado, com o PCP e que são muito sensíveis àquilo que o Miguel Urbano Rodrigues chamava de "a lei da vida" ou seja: a morte".

Hoje em dia, argumenta Pacheco Pereira, o "PCP vive uma crise que não acaba tão cedo, não acaba de um dia para o outro. Nem a crise nem o PCP. O partido não desaparece de um dia para o outro, não é um problema da morte do PCP que é uma estrutura que tem algum equilíbrio de manutenção. O PCP tem um papel na sociedade portuguesa e enquanto tiver esse papel subsiste".

No entender do historiador, o PCP representa "uma parte dos portugueses que não têm nenhuma outra representação. Não tem ninguém que defenda os seus interesses, e mesmo que esses interesses sejam muitas vezes usados de forma ideológica e política, a verdade é que ninguém os defende". Um exemplo? "Alguém que está numa fábrica, num escritório e que por qualquer motivo é despedido ou maltratado pelo patrão, mesmo que não tenha nada a ver com o PCP, vai ao sindicato, não vai pagar a um advogado. Esta dependência deste setor significa, em muitos casos, uma dependência de estruturas que são próximas do PCP. Mais até do que um problema de adesão política é um problema de fragilidade dos grandes partidos, principalmente PS e PSD que se dizem sociais-democratas, mas que na verdade nunca deram valor ao fator trabalho. E isso deixou o PCP como o único partido com uma linguagem laborista, um linguagem associada aos problemas do trabalho. E isso, é evidente, garante-lhes um mecanismo de representação".

"Ironicamente", diz António Costa Pinto, "o que os vai fazer progressivamente desaparecer são as grandes alterações e mutações sociais e de valor nas áreas onde o PCP era dominante do ponto de vista eleitoral. O partido sofreu, como aliás todo o movimento sindical clássico, com o declínio progressivo dos sindicatos e dos seus impactos". Porém, sustenta, "o declínio eleitoral não é acompanhado proporcionalmente pelo declínio de influência sobre o movimento sindical. O PCP ainda tem no movimento sindical uma alavanca importante de sobrevivência".

E é possível comparar a crise que surgiu pouco tempo depois das legislativas de 1987 com a atual?

Marco Lisi entende que o paralelismo com "as grandes mudanças a nível internacional" faz sentido. "Esta guerra na Ucrânia vai determinar novos realinhamentos, mas há aqui uma diferença fundamental: nessa altura [em consequência da queda do muro de Berlim, o colapso do comunismo nos países de Leste e a dissolução da União Soviética] havia uma forte divisão interna no partido, uma contestação que durou alguns anos. Agora nada disso acontece ou pelo menos não há sinais disso. Não há, até hoje, sinais de rutura".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt