Turistas, a prova de que reino dos Saud se move

Reduzir dependência do petróleo faz parte da Visão 2030 de MBS. Melhorar imagem da Arábia é outro dos objetivos da criação do visto turístico
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A abertura do reino ao turismo não religioso - ou seja, a não muçulmanos e a potenciais visitantes de sítios que não as sagradas Meca e Medina - mostra o quanto a atual liderança saudita está determinada a prosseguir a política de liberalização dos costumes. As medidas tomadas nos últimos anos podem parecer à primeira vista sem ligação, pois vão da reabertura dos cinemas até ao direito das mulheres a conduzir, mas fazem parte do plano do rei Salman para entregar ao príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, um país mais moderno.

É uma opção que tem riscos, a começar pela escolha de um filho, e logo um com pouco mais de 30 anos, como sucessor. Contraria a regra da passagem da coroa de irmão para irmão, todos como ele tendo por pai o rei Abdelaziz ibn Saud, o fundador do país. Acaba-se a sequência de monarcas idosos, o próprio Salman tinha já 79 anos quando sucedeu em 2015 ao rei Abdallah, que por sua vez tinha 81 anos quando em 2005 sucedeu a Fahd.

Consciente dos desafios de quebrar a regra, Salman delegou uma bela dose de poder em MBS, como é também conhecido o príncipe, sobretudo entre a juventude, que aplaude a abertura. É preciso não esquecer que dois terços dos sauditas têm menos de 30 anos, que milhares e milhares estudaram no estrangeiro e que, por muito que respeitem o islão, anseiam por menos restrições. Quem já visitou cidades como Riade e Jidá ter-se-á apercebido de como a sociedade de consumo - da Starbucks às marcas de luxo francês - se instalou no país que mais petróleo produz,

MBS tornou-se vice-primeiro-ministro (o primeiro-ministro é o rei), ministro da Defesa e presidente do comité que gere do as apostas económicas. E Salman inclusive tem oferecido o palco mundial ao filho para este se mostrar cada vez mais como o futuro da Arábia Saudita, e assim MBS esteve já em cimeiras do G20, além das visitas tanto à Casa Branca como ao Kremlin.

Nem tudo, porém, corre bem no processo de credibilização internacional. O isolamento do Qatar, suspeito de através da televisão Al-Jazeera desestabilizar os vizinhos, foi mal compreendido. A intervenção militar contra os rebeldes houthis no Iémen arrasta-se e agrava a crise humanitária. E sobretudo a morte do opositor Jamal Khashoggi no consulado em Istambul trouxe uma avalanche de notícias negativas, ao ponto de MBS, em recente entrevista a uma cadeia de TV americana ter assumido responsabilidade última enquanto governante apesar de negar qualquer envolvimento pessoal. Um processo no reino contra operacionais dos serviços secretos tenta pôr uma pedra sobre o assunto.

A complicar ainda a governação de MBS está a tensão com o Irão. Há quem veja no conflito a rivalidade entre árabes e persas ou entre sunitas e xiitas. Pode ser também um choque entre uma monarquia conservadora e uma república teocrática. O certo é que, do Iémen à Síria e não só, Riade e Teerão patrocinam fações rivais.

Há dias, um ataque a instalações petrolíferas sauditas revelou como a situação é explosiva na região, com o movimento houthi a reivindicar a destruição causada por drones e mísseis mas as suspeitas a recaírem sobre o Irão. Que a Arábia Saudita, que goza da proteção americana e é um abastado importador de armamento, tenha sido surpreendida, com boa parte da produção da Saudi Aramco afetada, também está a ser usada para questionar MBS, afinal é ministro da Defesa. Mas, por outro lado, o ataque só reforça o apoio de Donald Trump a Salman e filho, pois a estabilidade do reino é uma velha prioridade da política externa dos Estados Unidos. Em Riade, no museu dedicado ao fundador, está o avião que Franklin Roosevelt ofereceu a Ibn Saud. E recordemos que, quando o Iraque de Saddam Hussein invadiu o Koweit e disparou mísseis sobre a Arábia Saudita, os americanos foram a salvação.

Em Lisboa, o embaixador Adel Abdulrahman Bakhsh declarou-se feliz por ser agora mais fácil descobrir a sua "amada terra natal", pelo menos para os cidadãos dos 49 países, incluindo Portugal, com acesso ao sistema de visto eletrónico. As receitas turísticas serão uma benesse para um país que quer libertar-se da dependência dos hidrocarbonetos. E tornando-se acessível, a Arábia Saudita talvez atraia mais investimento, essencial para o sucesso da Visão 2030, no fundo o programa de reformas do príncipe MBS.

Não tenhamos ilusões de que as transformações em curso não visam uma abertura política. A razão de ser das mudanças é manter popular a dinastia que dá nome ao país desde 1932 (ano da unificação do Najd, bastião dos Saud, com o Hejaz). Mas é de aplaudir que Salman e o filho estejam a contrariar os ultraconservadores que desde 1979, data da tomada da grande mesquita de Meca, têm imposto um obscurantismo que antes não existia (ver Barakah Meets Barakah no Netflix). E uma nova Arábia Saudita onde os cristãos já podem orar livremente não será certamente a referência para os jihadistas que sonham com um regresso ao século VII.

Aliás, nos tempos do profeta Maomé em Medina, os muçulmanos conviviam com cristãos e judeus, ideal que MBS quis expressar quando se encontrou com o papa copta Tawadros II ou quando disse a Trump que se houvesse paz no Médio Oriente não haveria razão para evitar relações com Israel.

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