Também apelidado de "Senhor Limpo", em razão do seu aspeto imaculado quando se deu a conhecer nos ecrãs tunisinos, a partir de 2011, enquanto convidado a comentar os caminhos possíveis para o pós-revolução, o atual presidente (PR) da Tunísia ganhou ainda outro "cognome", mais apelativo, desde que assumiu a presidência do país, em outubro de 2019, o de "Robocop" (de Cartago, acrescento eu), fruto da combinação entre o seu ar austero e "limpo" e da sua dicção mecânica com espasmos contínuos. Quando fala, parece aquele colega de trabalho mais velho, que todos/as já tivemos e que nunca se habituou a deixar recados num atendedor de chamadas..O académico que se tornou comentador político, tem-se tornado um verdadeiro enigma para os tunisinos, desde que se assumiu como mais alto magistrado da nação. Nacionalista austero para uns, esquerdista e/ou integrista para outros, é na generalidade considerado como inflexível nos seus princípios. E que princípios são esses?.O seu conservadorismo agradou a grande parte da juventude tunisina aquando da sua eleição, que o alavancou para os 72,71% na segunda volta eleitoral. Assumido anti-Israel, compensa este pecadilho sublinhando o orgulho que o seu pai tinha em ter protegido dos nazis a jovem Gisèle Halimi, judia, que viria a tornar-se uma célebre advogada feminista. Não esconde a sua hostilidade à descriminalização da homossexualidade e à igualdade/paridade entre homens e mulheres no capítulo da herança, criando a dúvida sobre se não se tratará de um integrista islâmico encapotado. Tudo parece contraditório, mas tudo se encaixa, estando aqui também o sucesso da adesão à sua mensagem pelo eleitorado mais jovem. Todas as sociedades islâmicas são victorianas, das virtudes publicas e dos vícios privados e a "Tunísia de Bourguiba" (1957-87), da paridade entre homens e mulheres, da emancipação feminina e das liberdades individuais, ganhou fama no mundo árabo-muçulmano, de "país da mulher fácil". Inconcebível para o jovem tunisino, já conhecedor de outros mundos e que vive a esquizofrenia da conjugação da modernidade com a tradição. A fotografia social do Magrebe é esta, podendo ainda acrescentar-se o discurso islâmico, não obrigatoriamente islamista, sobre liberdade e libertinagem. Isto, ou aquilo, não é para nós, dizem eles!.O constitucionalista presidente, que defendeu em campanha um Estado de direito estrito e a revolução através da lei, em julho do ano passado deu uma interpretação extensiva ao artigo 80º da Constituição, por muitos considerada abusiva, nos mal-entendidos do calor do debate político entre dissolução ou suspensão do Parlamento. Este artigo prevê a possibilidade de o PR suspender o Parlamento por 30 dias, mediante consulta ao presidente desta Assembleia e ao primeiro-ministro (PM), ato que o "Robocop de Cartago" não cumpriu. Mas também teve razões para o não fazer, dado o nó górdio em que a instituição se encontrava. O Parlamento, tornara-se um palco de variedades e provocações diárias entre laicos e islamistas e entre laicos mais à esquerda e laicos mais à direita, que na verdade não são laicos, mas saudosistas de Ben Ali (ex-PR, 1987-2011). O presidente do Parlamento, Rachid Ghannouchi, também secretário-geral do Partido Ennahda (islamista e sucursal tunisina da Irmandade Muçulmana egípcia), partido maioritário da coligação governamental não comunicava com o seu parceiro e não estava a dignificar a casa que presidia. Ato contínuo, o governo também foi demitido, o que justificou a não consulta ao PM. É perante esta degradação institucional que Saied se vê providencial ao espelho e instintivamente flete o músculo. Perante este cenário foi de certa forma consensual perante a comunidade internacional, que não se tratava de um golpe de Estado, mas sim pelo que foi apelidado de um "golpe de força" (Vincent Geisser - Instituto de Pesquisa e Estudo dos Mundos Árabe e Muçulmano). A ideia seria "arrumar a casa" nos 30 dias do artigo 80º, nomear um governo de iniciativa presidencial, mantendo o registo da constitucionalidade..Onze semanas após o "golpe de força", em outubro, o PR Kais Saied nomeia por decreto finalmente não um PM mas pela primeira vez na história da Tunísia uma mulher primeira-ministra, a geóloga e académica Najla Bouden Romdhane, encarregada de escolher a sua equipa governamental, toda sujeita a uma saia muito justa, já que o decreto presidencial de "medidas excecionais" de 22 de setembro conferiu ao PR o poder executivo em exclusivo. A manobra de diversão é clara, distrair a opinião pública e comunidade internacional com esta "vitória feminina", num país onde o PR não concorda com a paridade homem-mulher no capítulo da herança! Quanto à Assembleia de Representantes do Povo, nome oficial do parlamento tunisino continua(va) suspenso, ultrapassando em muito os "30 dias constitucionais". A este propósito, cerca de um mês antes da nomeação da nova PM, Kais Saied mencionou estar a considerar efetuar alterações à Constituição de 2014, sem especificar que capítulos, secções ou artigos poderão ser "reciclados" em breve. No entanto, o seu conselheiro diplomático Walid Hajjem, descaiu-se numa entrevista a um canal árabe ao dizer, "Saied considera rever o regime político para instaurar um regime presidencial, sujeito a referendo popular. Isto significa suspender a Constituição e a adoção de outros mecanismos para a gestão do Estado. O regime político em curso com a Constituição de 2014 já não resolve". Mas já não resolve o quê?.O cancro da corrupção. Foi este aliás o comprometimento da nova PM Najla Bouden Romdhane, aquando do seu primeiro discurso, pós-nomeação. Foi também com esse objetivo que o demitido Hichem Mechichi foi nomeado PM em setembro de 2020. Conhecido servidor público da nova geração, que fez toda a sua carreira em gabinetes públicos anti-corrupção. Experiente e incorruptível, rodeou-se de uma equipa de outros incorruptíveis com quem trabalhava há uma vida e foi a partir daqui que a governação empastelou na Tunísia. Sem corrupção não há negociação. Porquê?.Porque os islamistas do Ennahda tinham maioria no Parlamento/Governo e provaram uma vez mais que podem ser ótimos na oposição, mas que não percebem o que são os constrangimentos de quem exerce o poder, que obrigam a compromissos e a uma ética de boa convivência nunca entendida por quem, sem experiência, ocupa os cargos imbuído do espírito "acabou a brincadeira" e depois se vê enleado nas suas próprias contradições entre o que gostariam de fazer e o que podem de facto fazer. O boicote e o quanto pior melhor, tão português aliás, torna-se no caminho mais fácil e rapidamente se chega ao beco sem saída. O "Robocop" apenas fez o seu papel, cortou a direito, caindo também na contradição do Constitucionalista!.Caso se confirme esta vontade de mudança de regime por parte do PR, o labirinto legal adensar-se-á. O Capítulo VIII da Constituição é exclusivo para a "Revisão da Constituição" (artºs 143 e 144) e a proposta necessita sempre de ser sujeira à aprovação de 2/3 do Parlamento (suspenso, recordo) e ainda a referendo popular após aprovação na referida câmara. Mouna Kraiem, constitucionalista, confirma que "todas as emendas feitas fora deste quadro será sinónimo de uma tomada de decisão fora do processo constitucional e é aqui que a questão se coloca, sobre a natureza e o conteúdo da alteração. O verdadeiro problema que se coloca hoje". Para esta constitucionalista, como ainda não é publico que alterações o PR quer fazer, "que implicações uma mudança de regime terá no capítulo relativo aos Direitos e Liberdades e ao Tribunal Constitucional". E ainda, "caso o PR decida optar por outro mecanismo, recorrendo diretamente ao referendo popular, as alterações referendadas terão sempre que ter a posteriori o aval do Parlamento"..No início deste mês o PR Saied deu novo sinal do destino autocrático que pretende dar ao regime, ao dissolver o Conselho Superior de Magistratura, substituindo-o por outro que acrescenta "temporário" ao nome. Este, tem agora poderes para demitir juízes a gosto, impedindo-os também do direito à greve. A razão oportuna para acumular o judiciário ao legislativo e ao executivo anteriormente concentrados na figura do PR, chama-se de novo Ennahda, acusados de inquinarem os processos relativos aos assassinatos de Chokri Belaid e de Mohamed Brahmi, políticos vitimas de uma extensa lista ao estilo "matança da Páscoa", na posse dos salafistas e que agora, segundo a razão oficial, influenciam juízes ligados ao Ennahda em atrasar o processo. Este esvaziar do judiciário pelo PR, não foi tão bem-recebido nos sectores da sociedade civil como em julho passado que deu o benefício da dúvida a um PR que travara um "Parlamento-espectáculo" e congelara as contas bancárias de deputados sob suspeita e os proibira de fugirem para o exterior. Na resposta a esta cena, "Robocop" viu mais contestação nas ruas e o mesmo slogan farol que se gritou há 11 anos, no início da Primavera Árabe e que dizia "O Povo quer o que tu não queres"! Todos sabemos como terminou a história em 2011, ficando agora a dúvida do que o próximo capítulo trará aos tunisinos. A diferença de julho de 2021 para fevereiro de 2022, é que o PR encontra-se agora sozinho, isolado no seu próprio enredo, restando-lhe preocupar-se em que não falte o rancho nos quartéis e esquadras de polícia, já que por enquanto ainda não há sinais visíveis de divisões nestas fileiras, um último reduto que o poderá acompanhar até ao fim, ou serem a mola para o reviralho..No primeiro de agosto 2021 através da Análise/DN "Tunísia. Não é golpe, mas o eterno braço-de-ferro contra a corrupção e contra os islamistas", dei o benefício da dúvida ao PR Saied, pois compreendo o irritante que é lidar com irritantes quando se quer apresentar trabalho com o foco no futuro, colocando o povo enquanto fiel da balança. Por outro lado, não é correto classificar de fora o que se passa dentro, tendo a nossa Constituição enquanto referência. Neste debate mais recente Farid Alibi, professor de Filosofia Política na Tunísia, destaca que "a Constituição de 2014 está cheia de lacunas que entravam a vida política, tornando difícil a resolução de várias problemáticas, na medida em que esta partilha prerrogativas entre vários centros de poder, não existindo um centro central para a resolução dos mesmos". Ou seja, o modelo ocidental da separação rígida de poderes pode não ser o modelo ideal para a Tunísia e pode não querer ser aceite pelos tunisinos. Este, enquanto fiel da balança, terá uma palavra a dizer caso avance o plano de mudança de regime, através de referendo. O que em Portugal é visto como um golpe de Estado, na Tunísia de hoje pode ser um caminho para a correção de tiro. Afinal o homem defendeu em campanha, fazer a revolução através da lei!.Politólogo/Arabista .www.maghreb-machrek.pt.pt