Tudo ao contrário de Francisco I e Solimão, o Magnífico
Apoio a lados opostos nas guerras civis na Síria e na Líbia, exibição turca de força marítima junto às ilhas gregas e a Chipre e resposta francesa com envio de navios, posições opostas no conflito no Nagorno-Karabakh entre azeris e arménios, têm sido mesmo muitas as situações de tensão recentes entre Ancara e Paris. Não só os dois países, ambos aliados na NATO, parecem destinados ao choque de interesses no Médio Oriente, no Mediterrâneo e até no Cáucaso (Nagorno), como os seus presidentes deixaram a relação pessoal degradar -se ao ponto de, a propósito da defesa por Emmanuel Macron do laicismo após o assassínio de um professor que mostrou cartoons sobre Maomé, o turco Recep Erdogan ter dito que o homólogo francês precisava de "um exame de saúde mental". "Grosseiro", foi a resposta da presidência francesa, classificando o estilo dos ataques do líder que nas últimas duas décadas tem dominado a vida política turca.
Tempos houve em que nada de muito sério parecia opor turcos e franceses, e nem sequer é preciso remontar ao século XVI e a essa extraordinária aliança de conveniência entre Solimão, o Magnífico e Francisco I, com o sultão otomano e o rei cristão a entenderem-se para contrariar Carlos V, rei de Espanha mas também imperador germânico. Ainda em finais de 2011, ambos os países estavam juntos no apoio à Primavera Árabe, com Erdogan, então primeiro-ministro, a procurar um banho de multidão em Trípoli, capital dessa Líbia prestes a livrar-se de Muammar Kadhafi, imitando a visita vitoriosa dias antes de Nicolas Sarkozy, um antecessor de Macron na presidência francesa. A competição entre Ancara e Paris era quando muito de modelo oferecido, com os franceses a ambicionar uma Líbia rendida ao modelo liberal europeu e os turcos a verem-se mais como os exportadores de uma democracia islamo-conservadora.
Não por acaso, foi na Líbia, caótica mais do que nunca mas riquíssima em petróleo como sempre, que o choque entre turcos e franceses primeiro começou a sentir-se, com Erdogan a apoiar o governo de Trípoli, reconhecido pela ONU, enquanto a França tem preferido apostar no marechal Khalifa Haftar, que também colhe as preferências de egípcios e russos. E é impossível não ver na estratégia tanto francesa como turca uma lógica de velha potência a proteger os seus interesses. Rechaçado pela União Europeia - e Sarkozy teve muita influência no fracasso da adesão turca -, Erdogan redirecionou as suas prioridades para o espaço geográfico mais próximo, naquilo que muitos classificam de diplomacia neo-otomana, já que se estende ao antigo território dos sultões, seja a Líbia, o Egito (onde falhou quando Abdel al-Sisi tirou a presidência a Mohamed Morsi) ou a Síria (sobrevivência do regime de Bashar al-Assad é uma meia derrota ). Também Macron joga com a ideia de uma França poderosa, com clientelas no leste do Mediterrâneo que vêm dos tempos das Cruzadas, como acontece com os cristãos libaneses.
Na prática, a Turquia tem sido mais bem-sucedida nos seus objetivos, mesmo que recorrendo a manobras como o uso de mercenários sírios tanto para combater na Líbia como no Nagorno-Karabakh. E teve agora um triunfo importante ao apoiar o vitorioso Azerbaijão na ofensiva contra o enclave rebelde controlado pelos arménios desde o fim da União Soviética. Já tinha tido outro ao impedir as milícias curdas da Síria de criarem uma espécie de estado ao longo da fronteira turca.
Quanto à França, é no Líbano que tem o maior legado de influência a defender no Médio Oriente e aí a Turquia não parece, para já, rival à altura. A reconstrução depois da grande explosão no porto de Beirute em agosto mostrará que as empresas francesas no chamado País dos Cedros estarão em vantagem sobre as concorrentes turcas. Mas no Nagorno viu, para desilusão da diáspora arménia muito influente em Paris, os seus favoritos perder.
Não se vislumbrando grandes evoluções positivas neste bizarro braço-de-ferro turco-francês nos próximos tempos, o foco pode incidir com o que têm Erdogan e Macron a ganhar com o arrastar da situação. No caso do líder turco, muitos dos ganhos desta competição com a França são internos: enfrentar o país que é o campeão do laicismo reforça um político assumidamente seguidor do islão que pretende substituir-se no imaginário nacional a Mustafa Kemal Atatürk, fundador da moderna Turquia em 1923 sob as cinzas do Império Otomano. Modernizador social, Atatürk impôs o laicismo aos turcos e Ancara beneficiou do interesse francês em ter boas relações com a República da Turquia para recuperar o sanjak de Alexandreta.
Por seu lado, Macron, a pensar também na reeleição em 2022, embora pouco à vontade no nível pessoal do atrito turco-francês, procura capitalizar a imagem de estadista com influência além-fronteiras e até tem beneficiado de inesperadas críticas à Turquia, como as da Alemanha (sempre preocupada com o uso da cartada dos quatro milhões de migrantes sírios refugiados na Turquia), depois de um incidente marítimo ao largo da Líbia, e sobretudo as de Mike Pompeo, secretário de Estado americano, que lembrou a Ancara a pertença à NATO, deixando de novo no ar o desagrado com várias decisões turcas, desde a ofensiva contra as milícias curdas que ajudaram a derrotar na Síria e no Iraque o Estado Islâmico até à controversa compra de um sistema de mísseis russo.