Trump mina agenda internacional de Biden

O reconhecimento do Sara Ocidental como território marroquino em troca de Rabat estabelecer relações com Telavive é a mais recente jogada do presidente cessante. Mas não deve ser a última.
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Quando o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos assinaram os Acordos de Abraão, em setembro, na Casa Branca, com Israel, especulava-se que Marrocos seria o próximo a fazê-lo. Não foi: seguiu-se o Sudão, em outubro. Acabou por acontecer nesta quinta-feira, no que é indiscutivelmente uma vitória diplomática do presidente dos EUA Donald Trump, do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu e do rei marroquino Mohammed VI.

Tal como Cartum passou a reconhecer Telavive em resultado de Washington retirar o país de uma lista de estados acusados de patrocinar o terrorismo, Marrocos obtém em troca dos Estados Unidos o reconhecimento das pretensões territoriais ao Sara Ocidental, que Rabat já ocupa em 80% do território. E tal como invadiu em 1975 a antiga colónia espanhola, fecha os olhos aos colonatos israelitas na Cisjordânia.

Além disso, os norte-americanos vão abrir um posto consular em Dahkla, no Sara Ocidental, ou como dizem os marroquinos, nas províncias meridionais.

Numa primeira fase vão ser reabertos os escritórios de representação inaugurados em 1994 nas capitais de Marrocos e Israel, encerrados já neste século em resultado da segunda Intifada. Os dois países têm uma ligação especial: cerca de 700 mil judeus israelitas são de origem marroquina, dos quais entre 50 mil e 70 mil visitam todos os anos o reino. Mohammed VI disse que vai conceder autorizações de voos diretos para o transporte de membros da comunidade judaica marroquina e de turistas israelitas de e para Marrocos.

Foi com a consultoria de engenheiros israelitas que em 1980 Marrocos construiu um "muro de defesa" contra as incursões da Frente Polisário, muro esse que cortou o Sara Ocidental em dois, ao longo de mais de 2700 quilómetros.

Outro dado importante: o rei é o presidente do Comité Al-Quds, uma estrutura da Organização da Conferência Islâmica em prol da preservação do património religioso e cultural de Jerusalém.

"A normalização das relações entre Marrocos e Israel é talvez menos estratégica do que a concluída com os Emirados Árabes Unidos, mas é mais emotiva para a população israelita", sublinha um diplomata ao Le Point.

"Coloca o prego no caixão em termos de qualquer possível referendo", disse Samia Errazzouki, ex-jornalista marroquino ao Washington Post. "Sem um referendo, vai ter um impacto sobre os passos futuros que a Frente Polisário e os refugiados irão dar. E, como vimos nos últimos meses, a guerra não está fora de questão".

Com um presidente hospitalizado há um mês e meio, enfraquecido pela crise económica, social e política, a Argélia, principal apoiante da causa sarauí, foi apanhada pelos acontecimentos.

Com o anúncio de abertura de vários consulados no Sara Ocidental ocupado por Marrocos, sem um novo enviado especial da ONU designado, nem qualquer avanço nas negociações nem no referendo que exige, a Frente Polisario tentou sacudir o estado das coisas e bloqueou, em 20 de outubro, a passagem de Guerguerat, terra de ninguém, mas importante ponto de passagem de camiões junto à fronteira com a Mauritânia. O exército marroquino lançou uma operação militar a 11 de novembro, o que levou ao fim da trégua por parte da Frente Polisário.

O movimento de autodeterminação, que perde simbolicamente com o anúncio de Trump, condenou "nos termos mais veementes o facto de o presidente norte-americano cessante Donald Trump atribuir a Marrocos o que não lhe pertence".

"Marrocos está a tirar partido da afasia argelina para fazer avançar os seus peões", comenta um observador ao Le Point. "Rabat impôs a política do facto consumado, empurrando a Polisário para os seus bastiões derradeiros".

As tensões podem, no entanto, alastrar-se. Apesar da crise, não é de excluir que Argel possa intervir militarmente se a Frente Polisário for visada.

Para Israel, esta ofensiva diplomática de normalização de relações com países do Médio Oriente e do Magrebe é de capital importância como primeiro passo para que o discurso de ódio contra o estado hebraico e contra os judeus deixe de ser uma realidade entre os árabes desde a mais tenra idade. Comum a todos os países envolvidos nos Acordos de Abraão, abre oportunidades de negócio, o que reforça as hipóteses de estabelecer relações pacíficas.

A administração Trump apoiou Marrocos no Conselho de Segurança desde a primeira hora, tendo mantido uma posição de destaque na preparação e finalização de projetos de resolução do órgão da ONU.

Através do Twitter do secretário-geral da ONU António Guterres, a organização reiterou que a sua posição sobre o Sara Ocidental não mudou: ou seja, não reconhece a ocupação marroquina e tem como objetivo organizar um referendo sobre a autodeterminação sarauí.

No entanto, Marrocos ganhou o apoio de um aliado de peso e torna-se mais difícil vislumbrar uma retirada de Rabat do Sara Ocidental.

"Pela sua parte, Donald Trump pode gabar-se de ter alcançado sucesso diplomático com o reconhecimento de um país importante", disse Khadija Mohsen-Finan, cientista política.

O que irá fazer Joe Biden e a sua equipa, é algo que ninguém sabe. Certo é que a política ativa de Trump neste campo está a condicionar a agenda internacional do futuro presidente.

Por um lado, se Biden não levantar objeções, isso será visto como um estímulo para Rabat riscar as negociações da sua agenda com a Frente Polisário e Argélia. Por outro, mexer num tema que envolve o reconhecimento de Israel é um tema que qualquer administração norte-americana terá dificuldade de confrontar, dado o apoio bipartidário no Congresso para a normalização das relações árabes-israelitas.

Biden terá ainda de lidar com outro país a reconhecer Israel: a Arábia Saudita. Todas as apostas recaem sobre Riade normalizar relações com Telavive, num movimento que tende a deixar o Irão ainda mais isolado.

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