Trump e Kim: do velho caquético contra o homem-foguete à positividade tremenda
Donald Trump tornou-se neste domingo, 30 de junho de 2019, o primeiro presidente dos Estados Unidos da América a pisar território da Coreia do Norte. O líder republicano encontrou-se com o presidente norte-coreano, Kim Jong-un, na cidade fronteiriça de Panmunjom, na Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias. Isto apesar de elas continuarem tecnicamente em guerra desde o conflito que as opôs entre 1950 e 1953 e que terminou com a assinatura de um armistício. Trata-se do terceiro encontro entre os dois homens no espaço de um ano, após as cimeiras bilaterais de Singapura em junho de 2018 e de Hanói em fevereiro.
"Atravessar esta linha [de demarcação] é uma grande honra, um grande progresso foi feito, uma grande amizade foi feita, sobretudo uma grande amizade. É um grande dia para o mundo. Há uma positividade tremenda, grandes coisas estão a acontecer. Nós conhecemo-nos e gostámos um do outro desde o primeiro momento e isso é muito importante", declarou Trump, depois de apertar a mão a Kim. "É muito bom vê-lo aqui, não esperava vê-lo neste lugar. Acho que com este encontro aqui, entre dois países que têm um passado hostil, estamos a mostrar ao mundo que temos um novo presente e que temos um encontro positivo pela frente", afirmou, por sua vez, o dirigente norte-coreano, enquanto jornalistas e fotógrafos se acotovelavam pela melhor imagem.
Após um encontro de 50 minutos, relatou a agência noticiosa japonesa Kyodo News, Trump e Kim Jong-un deixaram o convite um ao outro para visitarem os respetivos países e acordaram recomeçar as negociações sobre o nuclear. "Concordámos que vamos, cada um de nós, designar uma equipa. As equipas vão trabalhar nos detalhes", afirmou o presidente dos EUA, adiantando que a equipa norte-americana será liderada pelo representante especial dos EUA para a Coreia do Norte Stephen Biegun. "A rapidez não é o objetivo, queremos ver se conseguimos fazer uma coisa realmente abrangente, um bom acordo", sublinhou Trump, em declarações aos jornalistas no final do encontro.
Mas nem tudo são rosas, embora Trump assim queira fazer parecer. Apesar de em junho deste ano ter dito que recebeu uma "carta linda" do norte-americano e que lhe respondeu com "uma carta amigável", a verdade é que, antes da primeira cimeira em Singapura, há um ano, a carta que o norte-americano dirigiu ao seu interlocutor em Pyongyang nada tinha de amigável. Trump disse mesmo que a cimeira estava cancelada. Na missiva, o republicano refere que, "dadas a raiva tremenda e a hostilidade aberta" demonstradas por Kim em declarações que fez a seu respeito, já não considerava apropriado manter o encontro. "Esta oportunidade perdida é verdadeiramente um momento triste da história", escreveu Trump em maio de 2018. Mas um mês depois a cimeira foi ressuscitada.
Os insultos a que Trump se referia vêm de longe e são mútuos. Ainda antes de ser eleito, nas presidenciais de novembro de 2016, Trump disse à CBS: "Mandaria a China fazer aquele tipo desaparecer de uma maneira ou de outra e rapidamente. Este tipo é do piorio e não o subestimo... Qualquer jovem que sucede ao pai no poder, com aqueles generais todos e provavelmente toda a gente a desejar o lugar dele, não é alguém que deva ser subestimado." E à Reuters: "Eu negociaria com ele. Não teria qualquer problema em falar com ele."
Já depois de chegar à Casa Branca, disse Trump sobre Kim, ao programa Face the Nation da CBS News: "As pessoas perguntam 'ele é bom da cabeça?' Não faço ideia, mas ele era um jovem de 26 ou 27 anos quando o pai morreu. Está obviamente a lidar com pessoas duras, em particular os generais e outros. E numa idade tão jovem, conseguiu assumir o poder. Acredito que muita gente tentou tirar-lhe o poder, o tio dele ou qualquer outra pessoa. E ele conseguiu [manter-se no poder]. Por isso, é obviamente uma pessoa muito esperta." As ameaças vieram a seguir: "É bom que a Coreia do Norte não teça mais ameaças contra os EUA. Vão enfrentar fogo e fúria como o mundo nunca viu. (...) Falei com o presidente Moon da Coreia do Sul ontem à noite. Perguntei-lhe como é que o homem-foguete está. Há longas filas a formarem-se na Coreia do Norte [por causa da falta de combustível]. Azar!"
Em setembro de 2017, na Assembleia Geral da ONU, mais uma vez a referência ao homem-foguete. "Os EUA têm muita força e paciência, mas se forem forçados a defender-se ou aos seus aliados, não teremos outra escolha a não ser destruir totalmente a Coreia do Norte. O homem-foguete está numa missão suicida." A reação de Kim Jong-un chegou com estas palavras: "Agir é a melhor opção para lidar com o velho caquético que já nem ouve e que se limita a dizer o que quer. Em vez de fazer declarações persuasivas que ajudem a dirimir as tensões, ele disse uns disparates rudes e sem precedentes que nunca nenhum dos antecessores proferiu. Um cão quando está assustado ladra mais alto. Trump é um velhaco e um gangster que gosta de brincar com o fogo. Vou fazer o homem que se diz comandante supremo dos EUA, que não devia ser comandante supremo de um país, pagar pelo discurso em que prometeu destruir a DPRK [República Popular Democrática da Coreia]."
A troca de galhardetes não se ficou por aqui. "Kim Jong-un da Coreia do Norte é obviamente um doido varrido que não se importa de matar o povo à fome, vai ser posto à prova como nunca foi!", escreveu Trump, na sua conta de Twitter, ainda nesse setembro. "Porque é que Kim Jong-un haveria de me insultar chamando-me 'velho' quando eu NUNCA diria que ele é 'baixo e gordo'? Bom, tentei mesmo ser amigo dele - talvez isso venha a acontecer um dia!", disse noutro tweet. "Falei com o presidente Xi Jinping da China sobre as provocações da Coreia do Norte", escreveu noutro.
Kim alerta que tem um "botão nuclear" pronto a usar "a qualquer momento". Trump responde no Twitter. Mais uma vez. "O líder da Coreia do Norte acabou de afirmar que tem 'um botão nuclear sempre pronto em cima da mesa'. Alguém daquele regime pobre e faminto pode, por favor, dizer-lhe que eu também tenho um botão nuclear que é muito maior e muito mais poderoso do que o dele? E o meu botão funciona!" Citado por um jornal do regime, Trump responde em fevereiro de 2018. Kim Jong-un afirmou: "As palavras [de Trump] são gritos de um homem mentalmente perturbado."
Donald Trump tem o dobro da idade de Kim Jong-un. O presidente norte-americano tem 73 anos. O norte-coreano tem 36. O primeiro nasceu no pós-II Guerra Mundial. O segundo meia dúzia de anos antes de a União Soviética colapsar. Ambos têm mais irmãos e não foram os primogénitos. Frequentaram colégios particulares - segundo os media o norte-coreano estudou na Suíça - e foram encaminhados a seguir o negócio familiar. Enquanto estudante universitário de Economia, no final dos anos 1960, Trump trabalhou para a empresa de imobiliário que viria a herdar do pai, a Elizabeth Trump & Son, que mais tarde viria a dar lugar à Trump Organization. Já no século XXI, em Pyongyang, Jong-un frequentou a universidade que forma os quadros do regime e foi educado para ser o terceiro Kim a liderar a República Popular Democrática da Coreia.
Além destas coisas em comum, há outros pontos de contacto, como a inexperiência política de um e de outro e as formas de exercício de poder. Ambos os líderes exigem total lealdade pessoal e rodearam-se de familiares. A irmã do norte-coreano, Kim Yo Jong, tornou-se um dos seus conselheiros mais próximos. Chefiou a delegação enviada à Coreia do Sul para assistir aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018. Donald Trump Jr. fez parte da equipa da campanha eleitoral do pai, Ivanka Trump e o seu marido, Jared Kushner, são conselheiros presidenciais. Ela esteve com o pai na cimeira do G20 em Osaka, no Japão, ele esteve há dias a apresentar a primeira parte do plano de paz norte-americano para o Médio Oriente no Bahrein.
Kim Jong-un foi o responsável pela rápida aceleração dos programas nucleares e balísticos. De tal forma que, dizem algumas fontes, a Coreia do Norte ficou com a capacidade de atingir com um míssil território norte-americano. Além de ter ficado ainda mais isolado na cena internacional, o resultado traduziu-se no agravamento de tensões entre Washington e Pyongyang, que durante meses trocaram ameaças e insultos entre os respetivos líderes. Até que chegou a fase do desanuviamento, com os três encontros entre Trump e Kim Jong-un, os primeiros realizados com a ajuda do presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, como facilitador, este último, ao que tudo indica, com mais ajuda do presidente da China, Xi Jinping.
Entre os vários encontros entre os presidentes dos EUA e da Coreia do Norte, houve também cimeiras intercoreanas, entre Kim Jong-un e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in. Mas, segundo assinala uma análise de James Griffiths no site da CNN, "sai o presidente sul-coreano Moon Jae-in e entra em campo o presidente chinês Xi Jinping". Pyonyang culpa o líder sul-coreano por não fazer que haja avanços no processo de paz ou até um alívio de sanções, mesmo se Washington não está disposto a isso.
A influência do líder chinês como interlocutor entre Trump e Kim Jong-un cresceu após a segunda cimeira entre os dois líderes, em Hanói, no Vietname, no final de fevereiro deste ano, nota a análise. A China é o grande aliado da Coreia do Norte na região. Trump e Jinping chegaram ao G20 dispostos a compromissos. O presidente dos EUA aceitou uma trégua na guerra comercial com a China, durante a qual não vai impor taxas alfandegárias que ameaçara e vai permitir que a Huawei, gigante de telecomunicações chinês, faça negócios com empresas norte-americanas, como a Google, entre outras.
"Xi parece ter conseguido aquilo que queria nos encontros em Osaka [onde foi a cimeira do G20 no Japão], mas ainda está para se ver que influência irá usar sobre Kim para que Trump consiga algo que ele quer em relação à Coreia do Sul. Os três líderes estão agora num triângulo diplomático, cada um a fiar-se no outro, para conseguir aquilo que querem", diz a análise de James Griffiths.
Em 2017 Trump declarou: "A China tem uma grande influência sobre a Coreia do Norte. A China é que vai decidir se nos quer ajudar ou não com a Coreia do Norte. Se ajudarem, isso será bom para a China, se não ajudarem, não será bom para ninguém."
E onde fica, no meio de tudo isto, o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que chegou a ser falado para Nobel da Paz pela sua mediação entre Trump e Kim? O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte, citado pela agência KCNA e pela CNN, pôs as coisas nestes termos: "As relações estão a avançar na base da relação pessoal entre o camarada presidente [Kim Jong-un] e o presidente dos EUA. As autoridades da Coreia do Sul fazem melhor figura se se meterem na sua própria vida."
Dennis Rodman, ex-jogador de basquetebol profissional, é o outro amigo norte-americano de Kim Jong-un. Sabe-se que o líder norte-coreano é um adepto de basquetebol e o antigo poste dos Detroit Pistons e dos Chicago Bulls tem uma relação única com o ditador. Já esteve na Coreia do Norte em quatro ocasiões e atuou como improvável diplomata. Tal como Trump. Muitos ainda estarão agora a perguntar-se como foi possível.
Mas Rodman, de 58 anos, é também um velho conhecido do presidente Trump: partilharam por duas vezes o set do concurso Celebrity Apprentice; o empresário no papel de apresentador e o recordista de ressaltos da NBA como concorrente. Em 2014, quando Rodman foi pela primeira vez a Pyongyang, Trump reagiu desta forma: "O maluco do Dennis Rodman diz que eu queria ir à Coreia do Norte com ele. Nunca foi discutido, não há interesse, é o último lugar na Terra a que quero ir." Pelos vistos não.
Rodman apoiou a candidatura do bilionário republicano à presidência dos EUA em 2016. No ano passado, em mais uma viagem à capital norte-coreana, ofereceu a Kim o livro A Arte da Negociação, do qual Trump é coautor. O ex-basquetebolista também se dirigiu para Singapura em junho do ano passado para "prestar todo o apoio necessário" aos dois "amigos".