Três meses de geopolítica ao limite pelo Cazaquistão

Presidente Tokayev continua a criar o seu legado num país que celebrou agora 32 anos de independência. Aposta cazaque na diplomacia vectorial passa por cimeiras com Biden e Xi, mas sem nunca esquecer Putin, e imagem internacional do país exige mais reformas económicas e medidas de promoção dos direitos humanos.
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O Cazaquistão celebrou no dia 16 mais um aniversário da sua independência e estes últimos três meses têm sido de grande atividade internacional para o presidente Kassym-Jomart Tokayev, com encontros com líderes como o americano Joe Biden ou o chinês Xi Jinping, mas igualmente com o português Marcelo Rebelo de Sousa, neste último caso a 20 de setembro, em Nova Iorque, à margem da sessão anual da Assembleia Geral das Nações Unidas. Estas reuniões de alto nível com diferentes estadistas são a confirmação de que os cazaques continuam a apostar forte na diplomacia multivectorial que vem já do tempo do primeiro presidente, Nursultan Nazarbayev, e que visa garantir que o país não se deixa confinar pelos limites da geografia, que o colocou entre os gigantes Rússia e China

Esta tradição de diplomacia multivectorial está a ser especialmente testada desde fevereiro de 2022, quando a invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe uma série de desafios ao Cazaquistão. Por um lado, há a questão das sensibilidades internas, pois existem numerosas comunidades russa e ucraniana no país, por outro lado, há a necessidade de não hostilizar a Rússia mas também de não se isolar de uma comunidade internacional que aplica sanções em retaliação pela agressão. Nas votações na ONU, o Cazaquistão tem-se abstido nos votos de condenação de Moscovo, mas ao mesmo tempo apoia Kiev na defesa da integridade territorial e colabora com os Estados Unidos e outros países ocidentais para não ser visto como um subterfúgio da Rússia para contornar as sanções, o que é um teste permanente às capacidades do governo deste país que é o nono maior do mundo, mas com apenas 20 milhões de habitantes, na sua maioria de etnia cazaque, porém com mais de uma centena de comunidades, que inclui desde uzbeques a coreanos.

A favor do Cazaquistão joga a sua riqueza petrolífera e crescente dinamismo económico, a vontade reformista da sociedade e um islão tolerante que ajuda à coexistência nacional com as minorias cristãs e constrói pontes com o exterior, como se viu aquando da visita do Papa Francisco em setembro do ano passado. Também o processo de reformas políticas iniciado depois dos motins violentos de janeiro de 2022 tem atraído a atenção do mundo, com o Cazaquistão a procurar destacar-se como o mais ativo e vocal de entre os países da estrategicamente vital Ásia Central (a reunião de Tokayev com Biden a 19 de setembro, também à margem da ONU, foi no âmbito de uma inédita cimeira entre os Estados Unidos e cinco antigas repúblicas soviéticas - Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Quirguizistão e Tajiquistão).

É neste contexto de busca de um lugar de relevo na comunidade internacional e de procura de prestígio, que dura desde a proclamação de independência a 16 de dezembro de 1991, que se deve entender o decreto assinado por Tokayev a 8 de dezembro para promoção dos direitos humanos e do Estado de direito. Como explicaram em comunicado as autoridades cazaques, "a medida foi tomada antes do Dia Internacional dos Direitos Humanos, a 10 de dezembro, e do 75.º aniversário da adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Este documento fundamental sublinha o empenho do Cazaquistão em cumprir as suas obrigações internacionais, reforçar as instituições de direitos humanos e promover o desenvolvimento de um sistema nacional de proteção dos direitos humanos e da democracia". E acrescentaram: "o Decreto e o Plano de Ação representam uma nova era na dedicação do Cazaquistão às reformas democráticas e aos direitos humanos. Asseguram o funcionamento efetivo das instituições democráticas e dos mecanismos de direitos humanos no país. Um elemento notável desta iniciativa é a colaboração obrigatória com organizações internacionais proeminentes, tais como as Nações Unidas e a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), na execução das medidas delineadas no Plano".

Este compromisso de envolver as grandes organizações internacionais na promoção da democratização do país é um sinal dado ao mundo (e aos vizinhos poderosos) de que o Cazaquistão aprendeu as lições do passado recente e vê o projeto de reformas democráticas como a via de reforço nacional. Porém, o facto de vários índices internacionais de democracia (como o da Economist) reconhecerem apenas ligeiras melhorias e manterem uma avaliação crítica significa que o país tem de prosseguir com as reformas e mostrar mais resultados, por muito que, por exemplo, Tokayev dê o exemplo ao incluir na Constituição um limite ao número de mandatos presidenciais, quando o antecessor governou 29 anos.

Sobretudo para Tokayev, diplomata de carreira que em 2019 sucedeu a Nazarbayev, há o desejo de deixar de um legado pessoal para o futuro. Hoje o Cazaquistão surge em 56.º no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, integrando o grupo dos países de muito alto desenvolvimento, e das 15 antigas repúblicas soviéticas só os três países bálticos e a Rússia estão à sua frente, sendo que neste último caso até pode já não ser assim quando as estatísticas refletirem o impacto da atual guerra.

Esta questão do legado presidencial ganhou de certa forma uma nova atualidade com o livro de memórias agora lançado por Nazarbayev, o pai da independência que a dada altura deixou os clãs de próximos se misturar demasiado com os interesses do Estado. Tokayev tem marcado a distância, do antecessor, mas sempre de forma construtiva: um bom exemplo é a sua adesão à tradicional luta contra a proliferação de arsenais nucleares (o Cazaquistão, no polígono de Semipalatinsk, era o campo de testes soviético, com mais de 450 explosõres, como ainda agora relembrou o Astana Times), mas, perante os desafios económicos e a riqueza em que urânio, admitir a construção de uma central nuclear para fins civis se em referendo a população assim o decidir.

Um recente artigo de análise na Foreign Policy tinha como título "O líder do Cazaquistão faz da neutralidade uma arte", exultando a capacidade de Tokayev de manter boas relações com Vladimir Putin (nem que seja para evitar contenciosos territoriais), com Xi Jinping (o projeto da Rota da Seda foi anunciada há uma década em Astana), com Joe Biden (os Estados Unidos têm interesse em promover o Cazaquistão como ator-chave no coração da Eurásia) e com a União Europeia (no conjunto, o principal parceiro comercial, sendo que em junho o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier visitou Astana e em novembro o presidente francês Emanuel Macron também).

Veremos como essa "arte da neutralidade" continua a contribuir para o desenvolvimento sócio-político daquele que é o maior país encravado do mundo, um país cujo passado está ligado ao nomadismo das estepes, que sofreu muito com a sedentarização forçada no início da era soviétia, mas cujo futuro é manifestamente ser um parceiro construtivo da comunidade internacional, contando para isso com uma sociedade civil que aprecia a estabilidade e a prosperidade mas também ambiciona mais direitos políticos e mantém pressão sobre a classe política nesse sentido.

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