Gonçalo, o pai Vítor e o tio Joaquim: três gerações dedicadas à cereja

Passa de pais para filhos e outra vez de pais para filhos - até ver. A terceira geração já foi à universidade, depois de crescer nos pomares de cerejeiras da Cova da Beira, campanha após campanha. Da escola vêm as leis e a técnica, dos pais e avós, a vida real. O clima dirá se o ciclo continua.
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Eu costumo dizer, não sou engenheiro agrónomo. Sou engenheiro agrónomo, sou mecânico, eletricista, faço de tudo um pouco e cada vez mais isso é obrigatório." João Filipe Veríssimo senta-se no escritório por breves minutos. Tem uma espécie de formigueiro que o percorre, um ar cansado: é o primeiro dia da campanha da cereja. Mais abaixo, nos pomares, andam 35 pessoas na apanha e o chão por baixo das árvores tem um tapete de cereja estragada - mas isso só descobrimos depois.

Por agora João Filipe, 37 anos, é um jovem fruticultor sentado dentro de um moderno armazém, climatizado, no primeiro dia da apanha da cereja de 2019. É a terceira geração à frente do negócio, que vem dos avós, passou para o pai para chegar até si. "Desde que me lembro de ser gente andava atrás do meu pai e dos meus avós. Entretanto licenciei-me na Escola Agrária em Castelo Branco e fiz um projeto de jovem agricultor e estou aqui desde 2007/2008", conta. A quinta da família Veríssimo localiza-se em Castelo Novo, mas nem sempre foi assim.

Natural de Alcongosta, João Filipe deve ter cerejas no sangue - aliás, devem ter todos por ali. As ruas da vila têm cerejas gravadas, os cafés têm nomes de cereja e as conversas lá dentro também. Tudo é cereja, e não só em Alcongosta. Em Alcains estão carnudas à venda a nove euros o quilo, em Castelo Branco no topo de um bolo de frutos vermelhos que duas amigas disputam na belíssima pastelaria Belar. "Fica tu", "não, tu". "Tira tu que ainda agora estão a começar" (é época alta da cereja, o melhor é imaginar esta reportagem pintada da respetiva cor).

"Os avós, tanto o paterno como o materno, tinham os cantinhos com os pomarzitos de cereja e arrendavam uma cerejeira por aqui em volta, uma aqui outra ali, que era o que havia, disperso. E foi a vida deles na cereja. Também arrendavam pomares de laranjas, eram comerciantes, faziam os mercados aqui em volta, Castelo Branco, Covilhã e Fundão. Tínhamos as propriedades em Alcongosta. Depois o meu avô paterno comprou esta propriedade há mais de 27 anos e foi continuando. Este armazém foi construído em 2012", conta João Filipe. Aprendeu (quase) tudo com eles e uma parte na escola agrária. "Cada vez mais era impossível ser fruticultor sem ter formação. Temos a formação dos mais antigos, como o meu pai, que sabem muito, mais até do que as pessoas que são formadas, mas com alteração das leis, do mundo do trabalho em si..."

Vamos até ao pomar onde o pai, João Veríssimo Mendes, acompanha o primeiro dia de apanha de cereja. À medida que nos aproximamos da zona onde os trabalhadores (portugueses, nepaleses e búlgaros) tiram o fruto das árvores para o colocar nos cestos, adensa-se o manto vermelho molenga que cobre o chão. É uma dor de alma. O problema - contam-nos -foi a chuva da semana passada e as enormes amplitudes térmicas, com temperaturas a oscilar entre os oito e os 36 graus. O resultado é que muita da primeira cereja está inutilizada - a água racha-a e o granizo queima-a. O pai tem décadas de vida à mercê dos elementos e não se conforma. "Não estou a ver o ano bom, estou a ver o ano péssimo. Muita chuva...

É uma pena, foi a chuva, olhe para isto", diz tocando em cerejas que, sem forças, se desprendem da árvore.

Escuta-se um estrondo, como um tiro de canhão, que faz eco na serra da Gardunha, a enorme concha de pedra onde se aninham os pomares. É caça? É a guerra do Solnado? "Não, é uma máquina que tenho ali de disparo a gás, por causa dos pássaros", conta o patriarca. Os estorninhos são outros dos inimigos dos produtores de cereja, e os disparos falsos uma técnica de dissuasão. Como se não bastasse de imponderáveis, a mosca suzuki chegou há uns três anos, e obrigou a estratégias (tiras de inseticida e vinagre) para combater mais uma ameaça. "Ser agricultor é uma forma de empobrecer alegremente", brinca João pai. Ainda haveria de dizer nem pensar que os netos sigam as pisadas familiares - mas seguramente era o stress do primeiro dia de campanha a falar.

E como se apanha cerejas, senhor João? "Pega no raminho, dá um jeitinho, tem de vir com o pezinho. Isto [as nicadas] tem de ir logo para o chão. Num ramo destes aquilo com que eu ficar... olhe as que eu aproveitei, pode provar." Estão boas, homem! A meio da semana, as primeiras cerejas dos Veríssimo começam a chegar aos supermercados Lidl, de que são fornecedores exclusivos.

No lado sul da Gardunha, Gonçalo Batista, 38 anos, o pai, Vítor, de 57 anos, e o tio Joaquim, de 61, andam na campanha há duas semanas. Já chegaram às lojas as cerejas da Quinta da Fadagosa, localizada na Soalheira. "Não havia terras disponíveis [em Alcongosta]. Aqui havia abundância de terras, a preços mais disponíveis. Acabou por se revelar mais vantajoso porque acabamos por ter 15 dias de precocidade em relação ao norte da Gardunha. Já andamos há 15 dias, no lado norte é que se começa a produzir em força", conta Gonçalo. São quase 16.00, hora de ir buscar os homens e mulheres ao campo (todos portugueses) e ele não almoçou há muito tempo.

Para os fruticultores, os meses de primavera e verão são meses de trabalho intenso. A campanha da cereja começa no final de abril, meados de maio, segue até junho ou julho. Depois segue-se o pêssego, que vai até ao final de setembro. Por isso as férias de Gonçalo eram passadas nos pomares, tal como as do pai e do tio.

A passagem de testemunho entre gerações é natural. Gonçalo foi, tal como João Filipe, o único que foi à universidade, formou-se em Engenharia Agrícola em Évora. Vítor tem o 11.º ano, Joaquim o 7.º. A irmã seguiu enfermagem. "As mulheres não têm muita apetência pela agricultura", vaticina Vítor.

Falamos à sombra do armazém, com o chilrear dos pássaros que ali andam (também nos campos se disparam os tiros falsos de tempos a tempos). Os avós e bisavós de Vítor e Joaquim já se dedicavam ao negócio da fruta. "Antes era mais comércio, arrendavam pomares e assumiam a produção", diz Joaquim. Na zona de Castelo Branco, a cereja e a maçã, citrinos em Coimbra e no Ribatejo. Compraram a Quinta da Fadagosa em 2000 porque as exigências de qualidade aumentaram e esta era a forma de controlar todo o processo. "Não tínhamos experiência, não havia horticultura tão para sul da Gardunha. Era uma incógnita, fizemos ensaios", diz Vítor. Começaram com 20 hectares de pomares de pessegueiros e diospireiros, enquanto as cerejeiras se desenvolviam - demoram uns seis a sete anos a dar fruto. Hoje têm 90 hectares, dos quais 60 de pessegueiro, 12,5 de cerejeira e quatro de nectarinas. A "cereja gosta de temperaturas até 28 graus". Ou então, "fendilha e perde a humidade toda". Longe vão os tempos em que andavam no campo a trabalhar todo o dia, e saíam rumo aos mercados de Lisboa (Cais do Sodré, Rego e MARL) às oito da noite, onde chegavam às duas da manhã (agora têm um comissionista no MARL, vendem para o Intermarché e para a Compal).

Mas o negócio de gerações está a mudar por causa das alterações climáticas. Já foram obrigados a deixar a maçã, por causa do calor. "Tivemos aqui macieiras, mas tivemos de desistir, tivemos de arrancar porque as temperaturas subiram", diz Joaquim. "O clima mudou", diz Vítor. "Segundo dizem os entendidos, esta zona tem tendência para a desertificação. Daí a nossa luta, a ver se metem aqui um regadio. Faz falta, ia colmatar a desertificação. Se houver água há rega, durante o verão vai continuar a haver rebanhos, pastorícia, fruticultura, o ciclo vai continuar. Se não tivermos o recurso hídrico complica-se mesmo", defende Vítor Batista. Neste ano, não choveu na altura certa. Os Batista tiveram de andar a bombear água dos vizinhos e dos ribeiros para as cerejeiras da Quinta da Fadagosa. Na altura da colheita, chegou a chuva a estragar grandes quantidades de cereja. Apesar disso, preveem uma produção de 80 a cem toneladas.

O calor começa a baixar sobre a enorme área de árvores de fruto, onde um rendilhado de tons vermelhos se revela sobre o verde. Ao longe, o maciço de pedra da Gardunha. Gonçalo responde, sorrindo: "Uma boa cereja? Para mim tem de ter o pezinho curto, grosso, deve ser rija e crocante, a gente come e estala na boca. E deve pintar os lábios." É esse o certificado de qualidade.

Já há cerejas. O verão já pode chegar.

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