Três anos após o desafio dos baldes de água gelada, o que mudou?

O dinheiro angariado na sequência do Ice Bucket Challenge permitiu, entre outras conquistas, a descoberta de um gene que contribui para a esclerose lateral amiotrófica, o NEK1. A doença é hoje mais conhecida
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Dos anónimos às figuras públicas, milhares de pessoas despejaram baldes de água gelada pela cabeça abaixo no verão de 2014 em nome da esclerose lateral amiotrófica (ELA), que afetou Zeca Afonso e o mediático cientista Stephen Hawking. Três anos após o Ice Bucket Challenge, o desafio continua a dar frutos, já que contribuiu para um maior conhecimento sobre a doença e tem permitido financiar projetos de investigação, alguns dos quais conduziram a descobertas importantes. Durante a campanha, a ASLA (associação norte-americana da doença) angariou 115 milhões de dólares e, por cá, foram recolhidos 200 mil euros.

A ELA é uma doença neurológica degenerativa, progressiva e rara, que se caracteriza pela morte progressiva dos neurónios motores que conduzem a informação do cérebro aos músculos do corpo. Sem cura e de causas indefinidas, gera atrofia muscular progressiva até à incapacidade total. Na base da campanha está uma analogia: quando um doente recebe o diagnóstico, é como se lhe despejassem um balde de água gelada pela cabeça abaixo. Quem fosse desafiado pelos amigos, podia trocar o banho por uma doação ou fazer as duas coisas.

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Na lista de celebridades que se associaram à causa - consciencialização e luta contra a ELA - constam nomes como os de Mark Zuckerberg, Bill Gates, Justin Timberlake, José Mourinho ou Cristiano Ronaldo. E foram mais de 17 milhões de pessoas que na altura publicaram os seus vídeos no Facebook

"O impacto do desafio foi muito forte, sobretudo em Portugal, onde não havia nenhum conhecimento sobre a doença", adiantou ao DN Mamede de Carvalho, investigador do Instituto de Medicina Molecular e membro do conselho científico da APELA (Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica). Segundo o neurologista no Centro Hospitalar Lisboa Norte, "havia uma grande ignorância sobre a doença" no país, onde se estima que existam entre 600 e 700 doentes, pelo que a campanha "foi fundamental" para a tornar conhecida.

Paralelamente, permitiu que houvesse "uma coleta importante de verbas para investigação". "Em Portugal, onde não havia nada, conseguiu-se que alguma verba fosse direcionada para esse fim. O país tinha entrado no projeto Mine, que tem que ver com o estudo do genoma numa larga população de doentes, e estas verbas foram muito coletadas na Europa, e em Portugal, para este fim. Embora não chegasse, foi uma importante ajuda para pagar testes", avançou Mamede de Carvalho. No seguimento das doações, o Mine já permitiu a descoberta de novos genes ligados à doença, o que poderá ser importante para o desenvolvimento de novos fármacos.

As verbas conseguidas com a moda dos baldes de água gelada foram, segundo o neurologista, "fundamentais para subsidiar a investigação científica e permitiram grandes avanços". Contudo, estes ainda não chegam ao doente. "Embora haja muitos ensaios em curso, ainda não estamos na fase de chegar a um novo medicamento", afirma. Porém, após anos de sucessivos insucessos, "começam a existir alguns com resultados positivos". "Nunca houve tanto otimismo à volta da doença", observa Mamede de Carvalho.

Adesão sem conhecimento

Diagnosticado com ELA a 31 de julho de 2015, Pedro Souto, 41 anos, presidente da APELA, recorda que tinha conhecimento da existência da doença, mas "não fazia ideia da gravidade" da mesma. Considera que o Ice Bucket Challenge "deu frutos" - a associação recebeu 200 mil euros - e serviu para aumentar a consciência sobre a ELA, mas lamenta que muitas pessoas não tenham chegado à doença. De acordo com a APELA, muitos gravaram o vídeo alusivo ao balde de gelo "sem uma noção exata do motivo pelo qual reproduziam este gesto".

Pedro começou por perder a força no pé direito e, gradualmente, em ambas as pernas. Deixou de andar, perdeu a força no braço direito. Há mais de um ano que depende de uma cadeira de rodas. "O desafio é diário", diz ao DN. Sofre de uma forma medular da doença, pelo que esta "vai afetar todos os membros até chegar à voz e à insuficiência respiratória". Casado, pai de duas raparigas, era consultor informático, mas viu-se obrigado a abandonar a profissão.

No mercado, há apenas um fármaco para travar a progressão da ELA. "Aumenta a sobrevida até três meses. É entre falecer em abril ou em junho", lamenta Pedro Souto. Ao DN, Mamede de Carvalho lembrou que foi aprovado, em maio, um outro fármaco pela Food and Drug Administration (FDA) nos EUA, mas, na Europa, os especialistas têm dúvidas sobre a sua eficácia.

Portuguesa estuda terapêutica

Vencedora de um prémio atribuído pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no âmbito do Programa de Investigação Científica em ELA, Dora Brites tem vindo a desenvolver "investigação dirigida à terapêutica, na tentativa de fazer algo que possa evitar a progressão da doença". "Descobrir as causas da doença continua a ser um grande desafio, uma vez que as alterações genéticas encontradas apenas justificam 10% dos doentes que manifestam a doença. Tal significa que, em 90% das formas esporádicas, o desconhecimento do que leva ao início da doença é total", diz ao DN a professora e investigadora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

O prémio (50 mil euros por ano) destina-se ao desenvolvimento da investigação e à formação de alunos na área. "Não há resposta para estes doentes. Não existe terapêutica eficaz, porque, ao contrário da doença de Alzheimer ou da esclerose múltipla, as pessoas e os meios decisores não estão tão alertados para a doença". Para aumentar a consciência sobre a doença e na sequência da investigação que desenvolve, esta cientista promoveu o movimento - CLICK POR ELA - e organizou dois simpósios em 2016 e 2017.

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