Traumas, sonhos, memórias: cinco "Actores" virados do avesso
A primeira vez que o ator Nuno Lopes teve que morrer em cena foi quando fez de Romeu. Foi difícil mas lá agonizou da melhor maneira que sabia. "Apercebi-me que era uma emoção que eu não tinha, e depois, para outra peça, fui mesmo pesquisar ao Youtube, ver mortes, para ver como é que uma pessoa morre com um tiro", conta. Nuno Lopes partilhou esta experiência num dos ensaios de Actores - o espetáculo encenado por Marco Martins que hoje se estreia no Teatro São Luiz, em Lisboa - e foi a partir daqui que nasceu o segmento em que cada um dos intérpretes recorda uma das suas mortes.
Por exemplo, Bruno Nogueira teve de morrer precisamente numa outra encenação de Marco Martins, Rosencrantz & Guildenstern Estão Mortos, que se estreou em 2011. Miguel Guilherme, apesar da ser o ator mais velho e mais experiente neste palco, não tem grandes memórias das suas mortes: "A última coisa que eu fiz em que morria mesmo foi n"A Herdeira, telenovela da TVI, em que participei em 27 episódios. E é essa cena que fazemos aqui."
Rita Cabaço é a única daquele grupo de atores que nunca "morreu". Mas é ela que se dirige ao público para lhes falar da dificuldade de morrer em cena, "porque à partida o público sabe que o ator está vivo e porque não temos nenhuma memória associada a isto, nunca morremos antes." E, no entanto, apesar das dificuldades, todos os atores aprendem a morrer em cena e fazem-nos de todas as formas. Heroicamente. Comicamente. Lentamente. Abjetamente. Ironicamente. Este é apenas um exemplo, mas que nos permite perceber melhor o trabalho do ator.
Há já bastante tempo que Marco Martins tinha esta ideia de fazer um espetáculo sobre os Actores. "Tudo começou com uma inquietação minha com esta constatação de que os intérpretes com quem fui trabalhando ao longo dos anos muitas vezes se repartiam em dois ou mais trabalhos distintos", explica. "Estão a ensaiar uma peça e a fazer uma novela ou um filme ao mesmo tempo. Para um encenador ou realizador é uma situação muito incómoda porque encontra o intérprete num estado de exaustão constante. Mas é uma situação ditada pela necessidade económica dos atores."
Para pensar mais sobre isto, Marco Martins desafiou cinco atores e começou por ter longas conversas com cada um deles. "Queria identificar esses momentos em que eles acumularam vários trabalhos mas também outros momentos significativos das suas carreiras. Não os momentos de glória, mas os momentos de exposição, dificuldade, trauma, etc., escolhendo também intérpretes de várias gerações e que têm diferentes trajetos e diferentes oportunidades, e assim traçando um bocadinho o panorama do que é ser ator em Portugal nestes últimos 40 anos."
Durante o processo, a atriz Luísa Cruz, que estava no projeto desde o início ao mesmo tempo que gravava uma telenovela, sentiu-se muito cansada e teve que desistir. A solução passou por aproveitar todo o material já trabalhado com ela mas convocando uma atriz para fazer o seu papel - Carolina Amaral é, portanto, a única atriz que não faz o seu próprio papel. O espetáculo foi sendo construído a partir das memórias dos atores e das suas experiências, misturadas com recriações do seu trabalho. Eles recordam a primeira vez que interpretaram um papel ou como descobriram o prazer de representar, contam-nos alguns dos seus sonhos e pesadelos.
Mas é sempre difícil (e nem sequer é importante) distinguir o que é verdade e o que é ficção. "Quando trabalhas com a memória nunca sabes bem se é uma coisa real ou se é uma coisa que criaste, posterior, para servir este propósito. Foste acrescentando camadas com a idade e hoje lembraste daquilo assim", diz Bruno Nogueira. E Nuno Lopes concorda: "A memória já por si é uma ficção e depois é engraçado ver como é trabalhada para a adaptar ao espetáculo. Não para falar só sobre nós, isso seria pouco interessante, mas falar sobre o que é ser ator em geral. Acima de tudo, o espetáculo sobre o que é ser ator."
E o que é ser ator? "Isto não tem nada do outro mundo. Para mim seria muito mais difícil ser contabilista ou ser físico. É um ofício como qualquer outro, tem as suas mecânicas e encantos", diz Bruno Nogueira. Para Miguel Guilherme, "o prazer está implícito". E Nuno Lopes explica que "as pessoas já conhecem o lado positivo, aqui há uma exposição do que é o trabalho do ator, com todas as suas angústias e fragilidades, as tristezas, os fracassos. Tal como a repetição que é uma coisa que usamos muito no espetáculo."
Se todo o mundo é um palco, em Actores tudo começa, como na vida de um ator, com um casting. Os atores têm de dar provas do que valem. Sem rede. E à medida que o espetáculo avança pode acontecer que o encenador interrompa a cena. Que mande fazer tudo de novo. Que dê novas indicações. Como se estivéssemos a assistir a um ensaio.