Tratamento para a depressão pode evitar obesidade e diabetes

Nunca nos tempos mais recentes se fez tanto pão em casa. Ou bolos, tartes e pastéis. Os alimentos altamente calóricos estão na ordem do dia. Um contrassenso, dado que, confinados a casa, estamos mais sedentários. Logo, devíamos estar a apostar numa alimentação mais regrada. Agora, este desejo pode não passar necessariamente pelo paladar, mas antes por um novo mecanismo: um elo entre o fígado e o cérebro.
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Coincidindo com o dia em que a Direção-Geral de Saúde (DGS) emitiu orientações para uma alimentação mais saudável, um novo estudo do Centro Champalimaud, em Lisboa, identificou um novo eixo digestivo-cerebral, um mecanismo orquestrado pelo sistema digestivo e nervoso que influencia a procura por determinados alimentos. A investigação, liderada pelo psiquiatra e investigador Albino Oliveira Maia, diretor da Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Champalimaud, foi publicada esta segunda-feira (6 de abril) na revista científica Neuron. Albino Oliveira Maia e a sua equipa concluíram que até podemos tentar fazer boas escolhas alimentares de forma consciente, mas, em última instância, é o nosso corpo que tem sempre uma palavra a dizer.

As conclusões deste trabalho podem ser um importante passo para entender como ocorrem certos distúrbios relacionados com a alimentação, nomeadamente a obesidade e a diabetes, cada vez mais prevalecentes na população. E também conduzir a novas metodologias de tratamento, destacando-se algumas já aprovadas para a depressão.

Não é novidade que a comida exerce um enorme poder sobre nós. Quantos é que não viajaram até Almeirim só para comer sopa da pedra, ou até à Mealhada para se deleitarem com leitão à Bairrada. O mesmo se aplica aos pastéis de Tentúgal, às tripas à moda do Porto, às trouxas de Azeitão... O melhor é parar por aqui, que os tempos não estão para deslocações. A grande questão é: será apenas o paladar que determina as escolhas alimentares. A resposta é "não". O estudo do Centro Champalimaud concluiu que o que se passa na nossa boca é apenas uma pequena parte do processo. O resto acontece por via de interações entre o sistema digestivo e o cérebro.

Em declarações ao Diário de Notícias, Albino Oliveira Maia explicou que "a boca é o primeiro local de controlo - onde é feita a decisão sobre se a comida deve, ou não, ser ingerida. Uma vez dentro do organismo, a comida é dividida em nutrientes e começa a pós-ingestão. Nesta fase, é a vez do sistema digestivo "provar" a comida e conversar com o cérebro sobre a sua escolha de refeição".

Segundo o investigador, os processos de pós-ingestão podem ser divididos em dois tipos. O primeiro lida com o presente - quão nutritivo é o alimento e a quantidade que deve ser consumida. O segundo é um processo de aprendizagem que determina como, no futuro, o organismo deve reagir a esse mesmo alimento".

A avaliação que o organismo faz acerca do valor nutricional do alimento e que leva um indivíduo a desenvolver uma preferência por esse alimento é um exemplo dessa "aprendizagem pós-ingestão".

Como é que funciona?

Imagine-se dois alimentos com o mesmo sabor, mas com valores nutricionais diferentes: um alto e o outro baixo. Décadas de estudos permitiram aos investigadores constatar que a aprendizagem pós-ingestiva leva os animais e humanos a desenvolver uma preferência por alimentos mais calóricos, o que faz todo o sentido, já que é do interesse do organismo identificar qual o alimento mais nutritivo, optando por esse sempre que possível.

Para estudar essa questão, a equipa desenvolveu uma tarefa laboratorial na qual ratinhos pressionavam alavancas para receber uma injeção de comida diretamente no estômago. "Era importante fazê-lo dessa forma para eliminar aspetos como o paladar e focarmo-nos exclusivamente nos seus efeitos pós-ingestivos", explicou, por sua vez, a neurocientista Ana Fernandes, primeira autora do estudo.

"Numa das experiências disponibilizámos a ratinhos duas alavancas: uma que levou à injeção, no estômago, de alimentos com alto teor calórico e outra que levou à injeção de alimentos com poucas calorias. Em seguida, disponibilizámos as duas alavancas e observámos a sua resposta".

Os resultados da experiência foram claros: mesmo sem conseguir provar a comida, os ratinhos desenvolveram uma clara preferência para a alavanca previamente associada à administração no estômago do alimento de alto teor calórico, neste caso açúcar (sacarose). A outra alavanca libertava um adoçante artificial.

Depois de terem estabelecido este novo paradigma que identificou uma nova forma de aprendizagem pós-ingestiva, a equipa avançou para a identificação do mecanismo fisiológico envolvido.

Um sensor metabólico

Para estudar o mecanismo de aprendizagem, os investigadores começaram por estudar a forma como as informações sobre o valor nutricional dos alimentos chegam ao cérebro. "Para responder a essa pergunta, focámo-nos no nervo vago, um nervo longo que estabelece ligações bidirecionais entre o cérebro e vários órgãos internos", explicou Albino Oliveira Maia.

Até agora, a maioria dos estudos sobre a relação do nervo vago e o comportamento alimentar focavam-se nas ligações entre este nervo e o intestino. Mas a sua equipa decidiu adotar uma abordagem diferente. "Os resultados de trabalhos anteriores do grupo indicavam que um ramo específico do nervo vago poderia estar envolvido: aquele que transmite informações provenientes do fígado".

Porquê o fígado e não o intestino?

"As diferentes partes do intestino podem ter informações parciais sobre o valor nutricional do alimento que, naquele momento, está a ser ingerido. O fígado, por outro lado, recebe grande parte dos nutrientes e toxinas provenientes do intestino. Isso significa que reúne as condições ótimas para funcionar como um sensor metabólico", adianta Ana Fernandes.

E, de facto, quando a equipa testou a sua hipótese lesionando o ramo hepático do nervo vago, os ratinhos foram incapazes de adquirir este novo tipo de aprendizagem, dando força à hipótese de que este ramo específico (hepático) deteta e transmite sinais pós-ingestivos ao cérebro durante o processo de aprendizagem.

Uma descoberta empolgante

Levantou-se então outra questão relevante: para onde, no cérebro, estavam a ser enviados os sinais pós-ingestão? As suspeitas recaíram sobre a dopamina, molécula envolvida em diversos processos cognitivos. Vários estudos ilustram uma associação entre a alimentação e os neurónios da dopamina no cérebro. No entanto, nunca anteriormente tinham sido demonstradas as ligações diretas entre os sinais pós-ingestivos e a atividade desses neurónios.

De seguida, a equipa implementou várias abordagens experimentais para estudar se os neurónios da dopamina estavam envolvidos na aprendizagem pós-ingestiva que haviam descoberto. As conclusões alcançadas deram provas concretas desse envolvimento.

"Uma componente importante deste estudo foi a descoberta de que os neurónios da dopamina estavam envolvidos nesse novo processo de aprendizagem", adiantou o neurocientista Rui Costa, também autor do estudo.

A equipa conseguiu não só demonstrar que esses neurónios eram sensíveis aos sinais pós-ingestivos, mas também que a sua atividade era necessária para que a aprendizagem acontecesse. Para completar a experiência final, os investigadores testaram ainda se os neurónios eram influenciados pelo ramo hepático do nervo vago. E, mais uma vez, a resposta foi afirmativa. Quando o ramo foi cortado, a resposta dos neurónios aos sinais pós-ingestivos foi significativamente menor.

A relação entre a dopamina e o processo de aprendizagem

"Ficou demonstrado que os neurónios da dopamina respondem a recompensas, por exemplo, quando um doce chega à nossa língua", explicou Rui Costa. "Este estudo mostrou que esses neurónios também são ativados quando os alimentos chegam ao estômago e ao intestino. Além disso, demonstrámos ainda que quando os nutrientes chegam ao intestino, a ativação dos neurónios da dopamina é fundamental para desencadear o comportamento de procura de alimentos".

Desejar "gulodices" independentemente do sabor

Em conjunto, os resultados do estudo revelaram um novo processo de aprendizagem - orquestrado entre o sistema digestivo e o cérebro - que faz com que os animais procurem determinado tipo de alimentos sem nunca terem sentido o seu sabor, o que comprova a influência de processos subconscientes no controlo do comportamento alimentar.

Albino Oliveira Maia acredita que este trabalho fornece uma visão fundamental de como padrões únicos de comportamento alimentar emergem. "Ainda é cedo para saber onde este estudo nos levará. Contudo, foi a relação entre alterações de recetores da dopamina e obesidade que inspiraram o desenvolvimento deste trabalho", diz o investigador.

Embora sem aplicações clínicas imediatas, "esta descoberta é relevante a vários níveis, particularmente para a saúde pública. Primeiro, porque permite compreender os motivos e mecanismos que levam algumas pessoas a comer compulsivamente, o que contribui para os elevados índices de obesidade e diabetes, prevalecentes na população. E também para ajudar a encontrar soluções para evitar que estas doenças aconteçam", sustentou.

Para o psiquiatra, "este estudo assume ainda maior relevância ao constatar-se que os comportamentos alimentares estão intimamente relacionados com aspetos emocionais. E, num futuro próximo, estes distúrbios poderão vir a ser debelados com tratamentos já aprovados para a depressão, e que implicam a estimulação elétrica do nervo vago ".

Abre-se assim, concluiu o investigador, "uma janela para compreender melhor a relação entre a atividade visceral e os comportamentos emocionais, que até agora era pouco conhecida. E para alguém que se dedica ao tratamento de problemas emocionais, como a depressão, é importante perceber estes mecanismos e quais os possíveis tratamentos".

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