Lembram-se da figura esfarrapada de Mark Renton a encher o ecrã com os seus esgares de dor e o seu riso sarcástico? As drogas deram cabo do seu projeto de vida. Se é que alguma vez ele teve uma vida capaz de acolher um "projeto"....Ainda assim, Mark sempre gostou de cultivar a moda do "individualismo", não exatamente como filosofia de vida, antes como possibilidade de pertencer ao grupo dos eleitos que, precisamente, têm um projeto de vida. A saber: por mais que o nosso destino esteja assombrado, podemos sempre escolher... Escolher o quê? Eis o seu inventário: "escolher a vida", claro, mas também escolher um "emprego", uma "carreira", uma "família"... Porque não? E, no entanto, a sua visão do mundo nasce de uma sinceridade não muito pedagógica: "Escolher o teu futuro. Escolher a vida... Mas porque é que havia de querer fazer uma coisa dessas? Eu escolho não escolher a vida. Escolho outra coisa. Razões para isso? Não há razões. Quem é que precisa de razões quando tem heroína?".Interpretado por Ewan McGregor, Mark Renton é a personagem fulcral de Trainspotting, filme de Danny Boyle que descobrimos há um quarto de século - chegou a Portugal no dia 1 de novembro de 1996, cerca de oito meses após a estreia no país de origem, a Grã-Bretanha..Era um tempo em que muitos filmes ainda não dependiam desses lançamentos planetários que a Marvel, a DC Comics e as suas filiais nacionais passaram a montar como verdadeiras invasões sociais de todas as espécies de marketing. O que não quer dizer que 1996 não tivesse sido dominado por grandes máquinas promocionais de sabores mais ou menos apocalípticos: através de uma invasão de extraterrestres, em Dia da Independência, ou das agruras da meteorologia, em Tornado. Sem esquecer a primeira Missão Impossível vivida por Tom Cruise, talvez ainda o melhor título da série, sob a batuta do realizador Brian De Palma..Neste panorama dominado pelos chamados "filmes de ação", convenhamos que Trainspotting não seria o sucesso óbvio, mesmo não esquecendo o impacto do livro homónimo que lhe servia de base. Publicado em 1993, o romance de Irvine Welsh (ed. Relógio d"Água, tradução de Paulo Faria) rapidamente gerou um genuíno fenómeno de culto pontuado por muitas polémicas. Afinal de contas, de uma maneira ou de outra, a frieza da abordagem da toxicodependência de um grupo de personagens dos subúrbios de Edimburgo decorria de uma vontade de realismo a que muitos leitores foram sensíveis - em 2015, o livro já vendera um milhão de exemplares no Reino Unido, tendo sido traduzido em três dezenas de línguas..Na altura, se havia um nome do cinema britânico que podia simbolizar uma certa ideia de "independência", era justamente Danny Boyle. Nascido em Radcliffe, na região de Manchester, em 1956, Boyle podia ser encarado como símbolo de uma "nova vaga" posterior à geração de autores como Stephen Frears ou Mike Leigh que, ao longo dos anos 1980, tinham relançado, internamente e nos circuitos internacionais, a herança realista dos clássicos - o primeiro a começar por A Minha Bela Lavandaria (1985), título que serviria também de trampolim ao seu ator principal, Daniel Day-Lewis; o segundo assinando desencantadas crónicas sociais como Grandes Ambições (1988) ou Nu (1993), nesse mesmo ano de 1996 arrebatando a Palma de Ouro de Cannes com Segredos e Mentiras..Boyle não terá pretendido fazer um filme realista em sentido estrito, nessa medida tentando manter-se fiel ao "espírito" da escrita de Welsh: real e surreal, descritivo e onírico. O argumento assinado por John Hodge preservou a delirante proliferação de palavrões nos diálogos, integrando muitas expressões do calão escocês e inglês, ao mesmo tempo expondo a odisseia de Renton e seus amigos como a travessia de um bizarro mapa social e mental. Sem esquecer que o filme explora o efeito "coral" do romance, seguindo as sete etapas das atribulações das personagens centrais - as designações de Welsh são esclarecedoras dos vários momentos de consumo, rejeição e de novo consumo de drogas: "Largar", "Recaídas", "Largar outra vez", "Barracada", "Exílio", "Em casa" e "Saída"..Hodge tinha já colaborado na primeira longa-metragem de Boyle: Shallow Grave (1994), entre nós lançada como Pequenos Crimes entre Amigos, insólito e desconcertante cruzamento de matrizes do policial clássico com a comédia negra. Ironicamente, talvez possamos dizer que esse filme serviu de ensaio para a turbulência estética de Trainspotting: a descrição realista dos estados de dependência das drogas desemboca em momentos de puro pesadelo, afinal intensificando a perda de coordenadas das personagens e a ironia trágica com que tudo isso é vivido. Como diz a certa altura Mark Renton, "as ruas estão cheias de drogas para a infelicidade e a dor, e nós tomámo-las todas". De tal modo que parece não haver fronteiras para a lógica suicidária que conduz as personagens centrais: "Teríamos até injetado vitamina C se a tivessem ilegalizado.".Compreende-se, assim, que o lançamento de Trainspotting tenha sido acompanhado por opiniões francamente contraditórias, polarizadas entre os que reconheciam o seu valor realista e os que nele viam uma perversa banalização da dependência. Na altura, o crítico americano Roger Erbert (1942-2013) terá conseguido resumir de forma simples o que aconteceu: "O filme tem sido atacado como pró-drogas e defendido como antidrogas, mas em boa verdade é apenas pragmático. É um filme que sabe que a dependência conduz a uma rotina diária incontrolável, desgastante e profundamente desconfortável. E sabe também que apenas duas coisas a tornam suportável: uma dose da droga de eleição e a compreensão dos amigos também viciados.".Para Ewan McGregor, que também já integrara o elenco de Pequenos Crimes entre Amigos, Trainspotting foi um momento decisivo de alargamento das perspetivas da sua carreira. O Livro de Cabeceira (1996), de Peter Greenaway, e Velvet Goldmine (1998), de Todd Haynes, podem exemplificar essa evolução, mas foi em 1999, com a entrada no universo Star Wars, que o seu nome adquiriu fama internacional: nos episódios I, II e III da saga surgiu como Obi-Wan Kenobi, personagem que nos episódios IV, V e VI (os primeiros rodados) tinha pertencido a Alec Guinness. Moulin Rouge! (2001), de Baz Luhrmann, O Sonho de Cassandra (2007), de Woody Allen, ou O Escritor Fantasma (2010), de Roman Polanski, são alguns dos seus títulos mais conhecidos, sem esquecer que McGregor se estreou na realização com o magnífico Uma História Americana (2016), adaptação de Pastoral Americana, de Philip Roth, que também protagonizou ao lado de Jennifer Connelly e Dakota Fanning..Os companheiros de McGregor em Trainspotting - Robert Carlyle, Jonny Lee Miller, Ewen Bremner e Kelly Macdonald - construíram carreiras sólidas, quase sempre em papéis secundários, ainda que nunca obtendo a projeção do intérprete de Mark Renton. Em qualquer caso, de novo sob a direção de Danny Boyle - que vencera os Óscares de 2009, com Quem Quer Ser Bilionário? -, partilharam um segundo capítulo da história das suas personagens na sequela T2 Trainspotting, lançada em 2017..A palavra "sequela" pode, neste caso, gerar alguma confusão. De facto, T2 Trainspotting surgiu, uma vez mais, num contexto comercial dominado pelas aventuras de super-heróis e suas intermináveis derivações. Ora, escusado será dizer que a "parte 2" não obedece à lógica desse tipo de produtos, ainda que seja, realmente, uma continuação: uma adaptação do romance Porno que Wells lançou em 2002, reencontrando as suas personagens dez anos depois da ação do primeiro romance..Como alguns analistas escreveram na altura, o filme de Boyle, ainda que fiel ao espírito de "revisão da matéria dada" proposto por Welsh, tinha qualquer coisa de dispensável: a continuação das aventuras (e muitas desventuras) de Mark Renton & Cª. sofria da impossibilidade de relançar a energia crítica e irónica do filme original..Dir-se-ia que a deriva irrisória, porventura poética, daquelas personagens se esgotara na rotina de nada fazer a não ser "observar os comboios" (trainspotting). Numa espécie de involuntária autocrítica, tocada por uma estranha emoção, Renton relançava o drama das escolhas existenciais, agora na paisagem triste do século XXI: "Escolhe o Facebook, o Twitter, o Snapchat, o Instagram e mais mil maneiras diferentes de vomitar a tua bílis para cima de pessoas que nunca encontraste. Escolhe atualizar o teu perfil. Diz ao mundo o que foi o teu pequeno-almoço e espera que alguém, algures, te dê atenção.".dnot@dn.pt