Tragédia de Fermentões. A luz não chegou a tempo para a família Vieira

Gerador servia para iluminar e aquecer a casa onde foram encontrados mortos três adultos e duas crianças, por intoxicação. A luz ia chegar esta semana, mas foi tarde de mais
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"Estiveram a fazer a instalação elétrica na semana passada e tinham ficado de vir cá pôr a luz na terça ou quarta-feira desta semana. Agora, já não serve para nada", lamenta Dores Vilela, proprietária do Café Central de Fermentões e madrinha de Catarina, a menina mais velha da família que foi encontrada morta em casa, no domingo - ao que tudo indica devido à inalação de monóxido de carbono produzido por um gerador que se encontrava no interior da habitação para garantir luz e aquecimento em casa, enquanto não se concluía a instalação elétrica.

Aquela casa, um anexo que anteriormente servia para guardar ferramentas e um carro, era o projeto de vida do casal António (54 anos) e Helena Vieira (44), que ali morreram com as filhas Beatriz, de 9 anos, e Catarina, de 13, e com o irmão de António, Carlos (48). Caseiros numa quinta do Douro, a pouco quilómetros dali, na estrada que liga Sabrosa ao Pinhão, aproveitavam os fins-de-semana para transformar o velho anexo, situado nos terrenos do pai de António, numa habitação para onde a família se pudesse mudar de forma permanente.

As condições precárias da habitação foram salientadas pelo comandante dos bombeiros de Sabrosa, que acorreram ao acidente. "É inacreditável. Não tenho palavras para descrever. As divisões são minúsculas, cheias de remendos, de material de construção. Não achava possível alguém viver daquela forma", referiu José Barros, ainda no domingo, após resgatar os corpos das vítimas do interior do lugar.

À porta da casa da tragédia que abalou Fermentões ficou o trator com areia e material de construção que António trouxera no sábado para dar mais um avanço na obra. Já não o chegou a utilizar. Ao início da tarde de domingo, estranhando a demora dos filhos em aparecer lá por casa, uns 80 metros mais acima, o pai de António (José) e outro irmão (Sérgio) foram descobrir o cenário macabro: dois corpos tombados sobre a mesa da sala, outro no sofá e outros dois na cama, segundo contaram ao DN alguns vizinhos.

"Era tudo feito pela mão deles. Eram pobres, mas umas joias de pessoas", refere, ainda a viver o choque, o vizinho Jorge Pinto, que há dez anos construiu mesmo ali ao lado uma casa onde costuma passar os fins-de-semana e alguns períodos de férias. No domingo, também ele só se apercebeu da tragédia ali ao lado quando começou a ouvir as sirenes à chegada das equipas de socorro.

Os vizinhos já tinham alertado os Vieira para o perigo de utilizar o gerador dentro de casa. António lembrava que "a situação era provisória", até à chegada da luz que estava prestes a ser colocada. Nos muros que ladeiam o terreno já lá estava montada a caixa que iria receber o contador. Visível, estava também, a um canto, a caixa de papel do gerador fatal. O mesmo que, percebe-se, António usava para ligar a betoneira com que fazia o cimento para as obras da casa.

"Barraquito era o orgulho deles"

No dia anterior, como era hábito, os Vieira tinham estado no Café Central, onde Beatriz, a filha mais nova, "gostava de brincar atrás do balcão, a ajudar", lembra Dores Vilela, a proprietária que era comadre do casal. Neste fim-de-semana, curiosamente, a família até esteve para não vir a Fermentões. António estava adoentado. "Falei com a minha afilhada na sexta-feira e ela disse-me que não sabia se vinham porque o pai não estava muito bem. Mas no sábado o meu compadre ligou-me a dizer que vinha, porque tinha de continuar as obras. Aquele barraquito era o orgulho deles", diz Dores.

No sábado, à noite, "pelas 21.00", depois de comerem umas francesinhas no café, António, Helena e as filhas foram para casa. Dores disse-lhes que deixassem o pagamento para o dia seguinte, mas António recusou: "Disse que não queria ficar a dever nada a ninguém." Na manhã seguinte, de domingo, a proprietária estranhou que os compadres não fossem lá tomar o pequeno almoço, nem o café após almoço, até que chegou a notícia indesejada.

"Era uma família pobre, mas tentavam fazer a sua vida da melhor forma. Os filhos eram muito bem tratados, não faltava nada às crianças", recorda a dona do Café Central, lamentando que "nunca" os Vieira tenham sido "ajudados para as obras e para a instalação da luz". "Foram à câmara, à Segurança Social, mas nunca os ajudaram", queixa-se. "Agora que conseguiram acabar de pagar a baixada da eletricidade, com o dinheiro das vindimas, aconteceu esta tragédia".

Ao DN, o presidente da Junta de de Freguesia de Paços, à qual pertence Fermentões, diz que a família não estava sinalizada como precisando de apoios sociais. "Se estivessem, o apoio seria acionado. Era uma família que tinha habitação permanente, com todas as condições, noutro local. Esta era uma segunda habitação, digamos", explica Francisco Alves.

Mas os Vieira estavam em processo de saída da quinta na qual serviam como caseiros, conta Dores Vilela. O vizinho Jorge Pinto diz que eles teriam até "um prazo qualquer para abandonar a quinta". O DN visitou a quinta, mas esta estava fechada e não foi possível contactar os proprietários. "À semana não está ninguém, só vêm ao fim-de-semana", disseram-nos no centro de Provezende, o lugar mais próximo.

De volta a Fermentões, a dor é compartilhada um pouco por toda a aldeia. Alguns amigos e vizinhos que se concentram no café lamentam a má sorte de uma família que já tinha um historial de tragédias - "a mãe morreu de cancro, um primo morreu afogado no Douro, outra prima, há muitos anos, matou a filha e suicidou-se", contam - e rejeitam a hipótese que chegou a ser aventada, sobre a possível ingestão de cogumelos venenosos.

"Eles conhecem bem os produtos da terra. Aliás, na semana passada eu apanhei uns e até perguntei a um deles, o tio das crianças, se aqueles se podiam comer ou não, porque ele conhece isso melhor do que ninguém. Está habituado a trabalhar aí na terra", contra Francisco Pereira, um dos vizinhos, que mora em Vila Real mas está a restaurar uma casa de família ali mesmo ao lado daquela onde os Vieira morreram.

As autópsias do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) prolongaram-se pela tarde desta segunda-feira, mas em Fermentões poucas dúvidas restavam quanto ao descuido na utilização do gerador. Ainda para mais, o telhado "tipo sandwich" que António tinha instalado no último verão conferiu à casa um maior isolamento que, neste caso, pode ter acabado por ajudar à intoxicação. "Um destino cruel", lamenta Dores Vilela.

Minuto de silêncio na escola

Tanto Beatriz como Catarina, as duas crianças que morreram, recebiam apoio da Bagos D'Ouro, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) fundada em 2010 para promoção da educação de crianças e jovens carenciados do Douro como forma de inclusão social no território. Ao DN, a coordenadora Inês Taveira confirma que as meninas "eram apoiadas desde 2011", depois de sinalizadas pelos "parceiros sociais habituais" como a câmara e serviços sociais escolares.

O apoio consistia em "acompanhamento pedagógico na escola e visitas domiciliárias mensais", sempre no intuito de "fomentar o aproveitamento escolar". Um trabalho que, diz Inês Taveira, "no caso destas duas meninas estava a ser conseguido com sucesso".

Beatriz andava no quarto ano, Catarina no sétimo. Ambas no agrupamento escolar Miguel Torga, em Sabrosa, onde esta segunda-feira foi acionado um esquema de apoio psicológico para os colegas e professores das crianças e cumpriu-se um "emocionado minuto de silêncio", disse ao DN Adelino Tomás, o diretor do agrupamento.

O funeral dos cinco membros da família Vieira está marcado para esta terça-feira, às 15.30, no Igreja da freguesia de Paços.

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