Borba: "Eu vou tirá-los de lá. Acha que não têm direito a um funeral?"
Assim que o corpo de Gualdino Pita desceu à terra, a noite caiu sobre o cemitério de Santiago Maior, onde esta quarta-feira foi enterrada a primeira das vítimas mortais recuperada da pedreira de Borba. Como se o astro maior se quisesse associar ao luto vivido na região onde dois dias antes uma extensão da estrada que liga Borba a Vila Viçosa ruiu e arrastou para o poço cinco pessoas - dois trabalhadores de uma das pedreiras que ladeia a via (os dois mortos contabilizados oficialmente) e três desaparecidos.
O luto estende-se a Bencatel, uma povoação próxima da zona do acidente. Aqui vivia Gualdino (49) há muitos anos e também os filhos da terra José Rocha (53 anos) conhecido por todos como o Zé Algarvio, e o seu cunhado Carlos Lourenço (37).
Por estas bandas não há ninguém que não fale neles. As televisões passam em loop notícias sobre a tragédia que ninguém podia adivinhar, mesmo que muitos passassem diariamente naquela estrada. Não faziam ideia que parecia uma ponte, foram as imagens aéreas que lhes mostraram o perigo que tantas e tantas vezes correram, alheios a um desfecho desta natureza. Quando a noite chega fria e da cor do breu, os homens juntam-se no café Avenida, em Bencatel, antes volverem a casa para jantar. Todos têm uma opinião, uma solução para retirar os corpos. E se lamentam todas as mortes, há um nome que está na boca de todos, o do Zé Algarvio, "um homem sério, como poucos, que pagava tudo e a todos a tempo e horas". "Perdemos um grande ponta de lança!"
Manuel "Pachá" é dos que mais fala e levanta a voz, num discurso político contra os "corruptos que deixam coisas destas acontecerem". Mas os olhos azuis ficam vermelhos, marejados, quando num ato voluntarioso se acha capaz de ir tirá-los lá abaixo, ao Zé e ao cunhado. "Estes dois camaradas não podem lá ficar. Não tenho medo de lá ir, trabalho 24 horas por dia se for preciso para os tirar. Se aqueles senhores da proteção civil que lá estão não conseguirem, eu vou lá tirá-los. Acha que não têm de ter um funeral correto?"
"E como é que tu fazes isso, homem?", questiona-o Francisco Cardoso.
"Com uma grua telescópica, com um braço de 50 metros!"
À porta, já de saída, Manel da Cavaleira volta para trás, a dar mais uma achega nesta vontade que corrói os homens de Bencatel. "Eu fui lá oferecer uma bomba de extração, ninguém me disse nada até agora."
Manuel "Pachá" alterna a emoção com o discurso indignado contra governantes e responsáveis. E lamenta que a culpa morra sempre solteira. "Morreram mais de cem pessoas nos fogos. Viu os culpados? Eu não vi nenhum... Os culpados somos todos. É a gente que vota!"
E ele que trabalhou até há poucos dias nas pedreiras tem uma explicação para o sucedido - o liso, que deixou entrar a água e a terra. O liso, explica, "é uma camada entre duas pedras que não fecundou e a água, que não foi drenada, meteu-se lá dentro".
Francisco não pensa assim: "Isso é uma falsa questão, isto é um caso de incúria e negligência pura."
Manel "Pachá" não se conforma, continua a disparar conta políticos e corruptos. Todos dão a sua opinião, não se ouvem uns aos outros no café Avenida. Cada um atira aquilo que sabe. Como o milagre de nunca ter acontecido quando lá vão autocarros de excursões de turistas alemães, franceses e outros, para conhecer "a pedreira modelo", espreitar lá para baixo e tirar fotografias. "Porque é que é uma pedreira modelo? Pergunta bem, porque receberam muitos subsídios."
Manuel "Redondeiro" fala pouco, mas quando se mete na conversa é para lembrar Zé Algarvio. "Fui eu que lhe fiz o prédio. Era um homem muito sério. Sou eu que lhe trato dos animais e da horta. Ainda no sábado me disse que tínhamos de substituir dois pessegueiros. E olhe, agora..."
Agora todos esperam que se recuperem os corpos, para lhe dar um funeral condigno e para que Gertrudes e as filhas possam fazer o luto. "Já viu, com dois desgostos tão grandes, o marido e o irmão? Dois desgostos, cada um de sua forma..." Maria do Rosário é mulher de Manel "Redondeiro", e todos os dias tem ido à casa da mulher de Zé Algarvio, a mesma que o seu marido construiu. "Uma casa que é um sonho, mas que de nada lhe serviu..."
Na segunda-feira, a família almoçou e Zé Algarvio - homem de negócios, que também negociava em pedras - decidiu ir ao contabilista. O cunhado, que estava de férias e só regressaria ao trabalho no Intermaché no dia seguinte estava lá em casa. "Anda comigo que vou a Borba", terá dito para Carlos Lourenço. E os dois abalaram. Gertrudes, conta a amiga, diz que o marido não passava muitas vezes na estrada que ruiu - "era raro, parece que o estavam a puxar".
A mulher estranhou ele não dizer nada, estava sempre a telefonar-lhe. Às cinco da tarde começam as notícias que ninguém queria escutar. E Gertrudes pressentiu o pior: "Ai meu Deus, é o meu marido, é o meu irmão." Ambos estão dados como desaparecidos, mas há testemunhas que assistiram à carrinha de caixa aberta ser levada para o fundo da pedreira. Quem viu diz que as luzes de travão ainda acenderam, mas já não foi o suficiente para se salvarem.
A freguesia de Vila Viçosa está de luto e quer enterrar os seus mortos. Gualdino já está no cemitério da terra onde nasceu e onde os pais ainda vivem. Em Bencatel há quem entre no café, olhe para a televisão e pergunte: "Já tiraram de lá mais alguém?" Há urgência em pôr um ponto final na tragédia, fazer o luto. "A ver se acaba aquele delírio na casa da rapariga. É um corrupio de gente, a querer dar-lhe os sentimentos. Ontem nem se conseguia contar os carros", vai dizendo Maria da Conceição.
Maria Grilo e o marido Manuel Ramalho vivem paredes meias com o cemitério de Santiago Maior onde se realizou o primeiro funeral das vítimas da pedreira de Borba. Não o conheciam, porque abalou novo para Bencatel, mas foram assistir - "os pais são gente cá da terra". "Um grande funeral, havia muitos carros." A noite caiu e à frente do cemitério só as beatas dos cigarros denunciavam a passagem de tanta gente que quis ir despedir-se de Gualdino.