É num colégio de cardeais cada vez menos europeu e mais à imagem de Francisco aquele em que José Tolentino Mendonça se sentará num conclave que vier a ser convocado para escolher o sucessor do atual Papa. Neste sábado, no Vaticano, o arcebispo madeirense, bibliotecário e arquivista da Santa Sé, 53 anos, será o segundo cardeal dos 13 novos conselheiros do Papa a receber o anel e o barrete, símbolos cardinalícios, segundo o guião da cerimónia já divulgado..Contas feitas, a Europa já não detém a maioria no Colégio Cardinalício e o resto do mundo (em particular, as Américas) vai conquistando peso na hora de decidir: a partir deste sábado, no sexto consistório para a criação de cardeais, 88 países passam a estar sentados neste órgão colegial, 66 deles com capacidade eleitoral, Portugal incluído, que é como quem diz, com menos de 80 anos, segundo contabilizou a Agência Ecclesia..Onde a Igreja vai ganhando projeção é em África, na Ásia e na Oceânia: hoje, comparando com o início do pontificado de Francisco, a 13 de março de 2013, o número de cardeais eleitores destes três continentes subiu de 22 para 35, tantos quantos aqueles que têm idênticas responsabilidades na América do Norte, na América Central e na América do Sul..Numa antecipação do que seria um futuro conclave, a Agência Ecclesia projeta que a partir de 15 de outubro um futuro encontro irá reunir 66 eleitores criados em seis anos, já no atual pontificado do Papa Francisco, 42 ainda no de Bento XVI (2005 a 2013) e apenas 16 que sobrevivem do longo papado de João Paulo II (1978-2005), num total de 124 cardeais eleitores. Ou seja, já há uma maioria de cardeais "franciscanos", mesmo somando aqueles que o papa emérito e o papa polaco criaram. Entre os dias 7 e 15 de outubro, há outros quatro cardeais que fazem 80 anos e deixam de poder votar no sucessor do bispo de Roma..A guerra pouco surda contra Francisco.Estas contas não são de somenos: num quadro em que a Igreja Católica Romana pode enfrentar um cisma, como o próprio Francisco admitiu ao regressar da sua viagem apostólica a África, num tempo em que ultraconservadores milionários americanos - apoiados pela extrema-direita do país de Donald Trump e da Europa - ensaiam um golpe palaciano que condicione a escolha do próximo Papa, num momento quase raro da história em que coexistem dois papas, depois de Bento XVI ter abdicado em 2013, o atual bispo de Roma procura moldar o grupo dos seus conselheiros com homens que respondam às suas principais preocupações sociais e religiosas..O Sínodo da Amazónia - que se realiza no Vaticano, a partir deste domingo, dia 6, até 27 de outubro, sob o tema "Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral - é o primeiro embate de uma guerra cada vez menos surda e sem quartel, com setores fundamentalistas a apontar o dedo a Francisco por teses que não serão "católicas", por, entre outros aspetos, admitirem a ordenação de homens casados e "ministérios oficiais" para mulheres. Sem pudor, esses setores falam em "influência demoníaca" no encontro sinodal..Os grupos ultraconservadores milionários, com origem nos EUA - país onde os bispos foram admoestados de forma dura pelo Papa, por causa dos sucessivos escândalos de pedofilia e tentativas de encobrimento -, procuram alguém que, à sua imagem e semelhança, possa ajudar a escolher um conservador de boa aparência, capaz de repor o que entendem ser a ordem católica de sempre e que, aos seus olhos, foi profanada por Francisco..Influenciar a escolha do sucessor.O adjetivo "herege" é apontado muitas vezes a este Papa por estes setores, que também estão entre os principais financiadores do Vaticano. Serão insondáveis os caminhos das pressões junto dos senhores da Santa Sé. Não por acaso (ou talvez por isso), Francisco assumiu desde a primeira hora a vontade de limpar a Cúria Romana, a mesma que levou Bento XVI a resignar, dizendo-se sem forças para mudar o que era preciso mudar..Depois de no verão de 2018 ter falhado um primeiro golpe, que passava por envolver Francisco nos escândalos de abusos sexuais de menores na Igreja americana, o jornalista francês Nicolas Senèze, autor do livro Comment l'Amérique veut changer de Pape (ed. Bayard Éditions, que se pode traduzir por "Como a América quer mudar de Papa") e correspondente no Vaticano do diário católico La Croix, defende que há um novo golpe em curso, mais paciente, que pode levar tempo. Ou não: Francisco tem 82 anos, um historial de alguns problemas médicos e sempre disse que podia retirar-se antes da morte, como fez Bento XVI. Embora também tenha afirmado que só sairia com a casa arrumada..Este novo golpe procura influenciar a escolha do próximo bispo de Roma. Senèze defende que ricos americanos ultraconservadores batizaram a sua operação de The Red Hat Report, referindo-se assim ao barrete vermelho cardinalício, que os cardeais recebem das mãos do papa quando são elevados a esta função. Já se sabe: um cardeal participa no conclave que escolhe o bispo de Roma..Desde setembro de 2018, descreve o jornalista na sua investigação, este grupo tem promovido um inquérito que pretende obter um retrato fiel de todos os cardeais que podem votar, ou seja, com menos de 80 anos (serão 124, a partir de 15 de outubro, incluindo os novos que hoje recebem o anel e o barrete do Papa)..O objetivo é, algures num futuro mais ou menos próximo, preparar terreno para escolher um papa que tenha uma visão do mundo que se oponha frontalmente à de um bispo de Roma como Francisco, um "esquerdista" como é apoucado, por denegrir "o deus do dinheiro", atacar um liberalismo económico desenfreado e as políticas desumanas dos Estados ocidentais para com os migrantes, apostando sempre no diálogo e nas pontes com aqueles que os ultraconservadores querem ver expulsos da mesma mesa (como os homossexuais, as mulheres que abortam, os casais de uniões de facto, os divorciados e recasados, etc.)..De padre a cardeal num ano.Para os ultraconservadores, o pontificado de Francisco é um (mau) parêntesis na vida da Igreja Católica. E só um futuro conclave dirá se as escolhas que o Papa argentino tem feito o acompanham na urgência de mudança que Francisco tem invocado para a Igreja..Neste sexto consistório, o primeiro nome a ser ouvido será o de Miguel Ángel Ayuso Guixot, presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo Interreligioso. Depois será a vez de Francisco chamar Tolentino, com o Papa a ler a fórmula de criação e a proclamar em latim os nomes dos cardeais..O bibliotecário é o sexto cardeal português a ser nomeado no século XXI, um dos cinco que ficam como conselheiros do Papa (o ex-patriarca de Lisboa José Policarpo, nomeado em 2001, morreu em 2014), mas estas escolhas decorrem mais dos lugares ocupados e das funções exercidas - como agora no caso de Tolentino - e de tradições que perduram (mais tarde ou mais cedo, o titular do Patriarcado de Lisboa é feito cardeal)..Foi porventura maior a surpresa quando foi escolhido, a 26 de junho de 2018, para a Biblioteca e o Arquivo da Santa Sé, com o título de arcebispo titular de Suava, do que agora esta elevação a cardeal. Estava escrito, ao ocupar aquelas funções. A sua nomeação há pouco mais de um ano deveu-se muito à forte impressão causada pelo padre madeirense junto do Papa, quando o também poeta e biblista orientou, em fevereiro do ano passado, o retiro da Quaresma de Francisco e dos membros da Cúria Romana..Quando da nomeação, Tolentino Mendonça recusava ao DN que tivesse qualquer influência especial junto de Francisco. "Um retiro tem outra natureza, bem distante da lógica das influências. A voz que aqueles que fazem um retiro procuram não é certamente a do pregador. E mais. De uma forma despojada, nem é sequer a sua própria voz. A única voz importante é mesmo a de Deus que ressoa no silêncio do coração. Tudo o resto é acessório", confessou..A cerimónia terá início às 16.00 locais (menos uma hora em Lisboa), na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Além de Ayuso Guixot e de Tolentino Mendonça, Francisco chamará depois Ignatius Suharyo Hardjoatmodjo, arcebispo de Jacarta, na Indonésia; Juan de la Caridad García Rodríguez, o arcebispo cubano de Havana; Fridolin Ambongo Besungu, o arcebispo de Kinshasa, da República Democrática do Congo; Jean-Claude Höllerich, arcebispo do Luxemburgo; Alvaro L. Ramazzini Imeri, bispo de Huehuetenamgo, da Guatemala; Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha, em Itália; Cristóbal López Romero, o espanhol que é arcebispo de Rabat, em Marrocos; e Michael Czerny, o subsecretário da secção Migrantes do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (Santa Sé)..Além destes novos cardeais, o Papa criará outros três com mais de 80 anos, sem capacidade eletiva: Michael Louis Fitzgerald, presidente emérito do Conselho Pontifício para o Diálogo Interreligioso; Sigitas Tamkevicius, arcebispo emérito de Kaunas, na Lituânia; e o bispo emérito de Benguela, em Angola, o italiano Eugenio Dal Corso..Os cinco cardeais portugueses.José Tolentino Mendonça.Com 53 anos, José Tolentino Mendonça passa a ser o segundo membro mais jovem do Colégio Cardinalício. Padre, poeta, biblista e professor, este madeirense do Machico, nascido a 15 de dezembro de 1965, foi nomeado no dia 1 de setembro de 2018 para a Biblioteca e o Arquivo da Santa Sé. É o 48.º bibliotecário na história do Vaticano..António Marto.António Augusto dos Santos Marto, que nasceu em Tronco, Chaves, no dia 5 de maio de 1947, é o bispo da diocese de Leiria-Fátima, desde 2006. Antes de ali chegar esteve como bispo auxiliar de Braga e titular de Viseu. Depois da visita de Francisco ao Santuário de Fátima, a 12 e 13 de maio de 2017, Marto foi anunciado como cardeal em 20 de maio de 2018..Manuel Clemente.O patriarca de Lisboa veio do Porto, onde foi bispo de 2007 a 2013. Manuel José Macário do Nascimento Clemente regressou à sua diocese (é natural de Torres Vedras, onde nasceu a 16 de julho de 1948), para substituir José Policarpo. Com a morte do patriarca emérito, em 2014, Clemente, 71 anos, foi feito cardeal em fevereiro de 2015..Manuel Monteiro de Castro.Aos 81 anos, Manuel Monteiro de Castro é hoje o penitenciário-mor emérito do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica (um dos três tribunais do Vaticano). Nasceu em Santa Eufémia de Prazins, Guimarães, no dia 29 de março de 1938, e foi feito cardeal pelo Papa Bento XVI a 5 de janeiro de 2012, deixando o cargo de secretário da Congregação para os Bispos..José Saraiva Martins.José Saraiva Martins é o mais velho dos cardeais portugueses. Com 86 anos, já não é eleitor. Nasceu em Gagos de Jarmelo, na Guarda, a 6 de janeiro de 1932, e é hoje o prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos da Santa Sé. Com um percurso muito ligado a Roma, foi criado cardeal a 21 de fevereiro de 2001.