Tolentino Mendonça avisa que "a vida é um valor sem variações"

O cardeal Tolentino Mendonça avisou esta quarta-feira que "a vida é um valor sem variações", defendendo o relançamento da aliança intergeracional para ajudar os idosos, as "principais vítimas da pandemia", a serem "mediadores de vida para as novas gerações".
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Na cerimónia comemorativa do 10 de Junho, que decorreu esta quarta-feira no Mosteiros dos Jerónimos, em Lisboa, o cardeal e poeta madeirense Tolentino Mendonça, escolhido por Marcelo Rebelo de Sousa para presidir a estas comemorações do Dia de Portugal, foi o primeiro a discursar.

Na perspetiva do cardeal, é preciso "reforçar o pacto comunitário", o que implica "relançar a aliança intergeracional" porque o pior que "podia acontecer seria arrumar a sociedade em faixas etárias".

"A tempestade provocada pela covid-19 obriga-nos a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e desta Europa. Eles têm sido as principais vítimas da pandemia", lamentou.

Para Tolentino Mendonça, é preciso "rejeitar firmemente a tese de que uma esperança de vida mais breve determina uma diminuição do seu valor intrínseco" porque "a vida é um valor sem variações".

"Uma raiz do futuro de Portugal passa por aprofundar a contribuição dos seus mais velhos, ajudando-os a viver e a assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações", defendeu.

O chefe dos arquivos do Vaticano - convidado por Marcelo por ser da Madeira, ilha onde o Dia de Portugal se celebraria caso não tivesse surgido a pandemia - disse ainda que "robustecer o pacto intergeracional é também olhar seriamente para uma das nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35 anos".

Esta é "uma geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas aspirações, uma segunda crise económica grave".

Ou seja, são "jovens adultos, muitos deles com uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam sucessivamente a adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter filhos e de se realizarem".

Além do mais, "a pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto ambiental" porque "hoje é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e climático, que têm uma clara raiz sistémica". "Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que para as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres vivos, tem sido uma evidente regressão."

"Está tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais, mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano."

O cardeal procurou ainda passar a mensagem de que em Camões há todas as lições aplicáveis ao presente: "Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania."

"Desconfinar - insistiu ainda - é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época."

Tentou, por outro lado, traçar paralelismos entre a atualidade e as viagens da expansão marítima portuguesa relatadas em verso por Camões n'Os Lusíadas".

"A tempestade descrita por Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está sobre este mundo."

Ou, dito de outra forma: N'Os Lusíadas, Camões "não apenas documentou um país em viagem, mas foi realmente mais longe: representou o próprio país como viagem".

E, sendo "Portugal uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos", é "no itinerário de um país [que] cada geração é chamada a viver tempos bons e maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria e travessias borrascosas".

"A história não é um continuum, mas é feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles", disse ainda o prelado (leia AQUI o discurso completo).

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