Todos os bichos dançam nesta arca de Nóe onde não há dois iguais
Maurício, um venezuelano que vive há mais de 20 anos na ilha da Madeira, já está à espera no aeroporto do Funchal. É colaborador do Grupo Dançando com a Diferença (GDD) - formado por bailarinos com e sem deficiência - quase desde o seu começo, em 2001, ano em que a Direção Regional de Educação Especial e Reabilitação da Madeira convidou o brasileiro Henrique Amoedo para dirigi-lo.
Henrique estaria no escritório a organizar toda a logística que antecedia a antestreia de Bichos, criação do coreógrafo Rui Lopes Graça para o grupo a partir da obra homónima de Miguel Torga. A falar com os pais dos bailarinos, a distribuir pessoas pelos carros que, em três dias, para ensaios e espetáculos, nos levariam ao longo daquela meia hora que dura a viagem do Funchal à Calheta, lugar do Centro das Artes Casa das Mudas. Lugar onde, pela primeira vez, naquele domingo de 27 de setembro, Bichos apareceria inteiro e em palco na antestreia. O bailado voltará ao palco no Teatro Baltazar Dias, Funchal, no dia marcado para a estreia: 28 de janeiro de 2016.
Ao aeroporto acaba também de chegar Nuno Meira, que assina o desenho de luz do espetáculo. Vinha do Porto, onde trabalhara em Turandot, de Carlo Gozzi, no Teatro Nacional São João.
A sensação que se tem é a de ter sido convidado para passar o Natal em casa alheia e logo se entrasse no frenesim da família em causa. Telmo, um dos bailarinos do Grupo Dançando com a Diferença, aparece para almoçar. Tinha 11 anos quando, na instituição de educação especial que frequentava, viu um anúncio das aulas de Henrique no grupo que desde 2007 pertence a uma associação - Associação dos Amigos da Arte Inclusiva - já desvinculada do governo regional.
Telmo tem agora 25 anos e nunca parou de dançar. Em palco, conta, é o corvo dos Bichos. Minutos depois chegaria Rui Lopes Graça com Henrique. Recordam o mês de julho que o coreógrafo passou na ilha para conceber o espetáculo. Como tantas vezes jantou em casa das famílias dos bailarinos, como ali o levaram a conhecer a Madeira ou como num domingo foi a Lisboa buscar os seus três filhos para os últimos 15 dias da estada.
Os Bichos são oito, embora na obra a que Miguel Torga chamou a "a minha pequena arca de Noé" sejam mais. Zé, ou José Figueira como sempre é chamado, o touro, é cego. Bárbara Matos, o cão, Joana Caetano, o gato, Pedro Silva, que não é nenhum dos Bichos - lá iremos -, tal como Sofia Marote, a cigarra, têm síndrome de Down. Aléxis Fernandes, o galo, tem Asperger. A Telmo foi diagnosticado em criança "desajustamento socioemocional", aquilo a que, explica Henrique, hoje se chama "hiperatividade, défice de atenção ou dificuldades de aprendizagem". Há ainda Joanna Ako, o burro, e Nuno Borba, o rapaz chamado Nicolau que colecionava obsessivamente insetos e um dia se transformou nisso mesmo que o rodeava. Não têm deficiência.