Simone recebe o DN no seu "pombal" no centro de Lisboa, uma casa de bonecas numa rua que tem nome de Jesus. Ela que se zangou com a Igreja Católica . Teve dois filhos e não lhes pôde pôr o seu nome. Tinha sido casada, um casamento marcado pela violência doméstica e que rapidamente acabou. E é assim que começa a cantar, para sair da cama, para perder o medo, até tocar muitos outros instrumentos. Uma entrevista em vésperas do seu espetáculo recente no Teatro Tivoli, com os últimos preparativos. Simone de Oliveira combina ensaios, faz telefonemas, não para, sempre foi assim. Numa vida artística que diz ter surgido "por acaso" e a responder bem às oportunidades. E sorte..Em que fase da vida é que está? Estou na fase de estar feliz, tenho a obrigação de ser uma mulher feliz por variadíssimas razões. Tenho saúde, uma casa pequenina que é o meu pombal, comprada com o meu dinheiro - só a comprei depois do Sr. Varela [Silva] morrer. Tenho algum trabalho. Tenho dois filhos espantosos, quatro netos de uma verticalidade absoluta, que foi uma herança deixada pelo meu pai e pela minha mãe. Tenho uma filha licenciada em Psicologia, um filho professor doutor em Engenharia, um neto arquiteto, outro neto engenheiro, outro, o Miguel, que está a fazer exame para a faculdade e também vai para Engenharia..Ninguém herdou a veia artística da avó? Olhe que não! Que raiva que me dá!.Mas gostava? Não, não, não. Nunca quis que um filho ou neto seguisse as minhas passadas, foi muito complicado, sobretudo manter o que se conquista. Devo isso a três ou quatro coisas: primeiro, ao facto de os poetas e os músicos terem feito canções para mim; depois, ao facto de o público estar comigo. Consegui atravessar estas seis décadas cantando por montes e vales, correndo o país de norte a sul, sozinha a conduzir, com os filhos pequenos, chegar a casa às sete da manhã com a cabeça completamente desaustinada e ir fazer teatro de revista, sem um dia de folga..Às vezes, duas sessões por dia... Duas sessões todos os dias e três aos fins de semana e feriados. Durante a semana, a primeira às 20.45 e a segunda às 22.45..Foi esta a vida que a Simone escolheu. Não, não, tudo começou por mero acaso. Nunca pensei em ser artista nem em representar. Só estou a cantar porque fugi de casa, fugi de um casamento por violência doméstica. Casei-me com 19 anos e voltei para casa dos meus pais, que foram espetaculares, espantosos, porque uma mulher fazer isto na década de 1950 não era fácil..Esteve pouco tempo nesse casamento. Dois meses e meio..Naquela altura dizia-se: "Volta para tua casa, para o teu marido." Eles não o disseram. Aliás, não valia a pena, disse-lhes que, se me mandassem voltar para ele, ia viver na rua. Fiquei muito doente, batia uma porta e tinha medo, não andava sozinha na rua. O médico dizia: "Vamos fazer qualquer coisa a esta miúda para a tirar da cama." Eu gostava de cantar para a minha mãe, sempre o "fado da carta", da Fernanda Baptista, muitas vezes o cantei sem pensar vir a conhecê-la e cantar com ela. Ouvia um programa na Emissora Nacional, à sexta-feira das 12.20 às 13.00, do Centro de Preparação de Artistas da Rádio. É a minha irmã que diz à minha mãe: "Ela canta tão bem! Há a escolinha da música que ela costuma ouvir nos programas..." Claro que o meu pai disse logo que não, era belga, por isso é que eu me chamo Simone..Deixe-me adivinhar, a Simone insistiu, não é de desistir. Foi a minha mãe que insistiu por causa da conversa do médico. O meu pai cede, fala com o diretor do centro, o professor Mota Pereira, e conta-lhe a minha história, que era para melhorar a minha saúde e não para ser artista. Lá vou eu, de mão dada com a minha irmã, não andava sozinha. Ele pergunta-me: "Então a menina canta? Sabe o que é um piano? E um microfone?" Um piano eu conhecia, mas um microfone nunca tinha visto. Não havia televisão, que começa nessa altura, em 1957..Não queria cantar.Tinha a noção de que tinha uma boa voz? Não pensava nisso, não queria cantar, só queria apagar o que tinha vivido naqueles meses e deixar de ter aquele medo. Cantei e ficou tudo a olhar para mim, tinha outra voz, que perdi. Passados três meses, estava no programa da Emissora que ouvia . Aparece a RTP e o Melo Pereira vai à procura dos meninos e das meninas cantores para fazer programas na televisão . Onde? Ao Centro de Preparação de Artistas da Rádio. A Madalena, o Calvário, o Artur Garcia, eu, a Alice Amaro, estávamos todos no centro..É o princípio de uma carreira que já conta com 62 anos. Sim, mas sem facilidades. Houve uma fase em que vestia muito mal e fui considerada das mais mal vestidas do país pela Vera Lagoa, que me matou e desgraçou. Como sou muito torta, um dia fiz um LP e quis que a Vera Lagoa escrevesse a parte de trás do LP. Ficou tudo a olhar para mim. Fui buscá-la com meia dúzia de rosas numa caixa..Nunca recusou um bom combate? Nunca. A não ser que eu diga que não chego lá, mas tenho primeiro de tentar. As coisas foram acontecendo assim..Quando é que percebeu que estava a construir uma carreira? Em 1965, quando representei Portugal no primeiro Festival da Eurovisão, com o Sol de Inverno. Aí tenho a noção de que aquele era o caminho, embora tivesse tido dificuldades porque fui sempre muito contestada. Primeiro, foi o meu nome, o senhor do coro dizia que eu era uma rapariga com um nome híbrido, que ninguém sabia de onde vinha, e eu mandei-lhe a cópia do bilhete de identidade. Depois, tive filhos sem ser casada, outra bronca. Tive filhos de mãe incógnita durante dez anos..Não os pôde registar como seus filhos? Não, porque tinha sido casada pela Igreja e ele ficavam com o nome do senhor com quem eu tinha casado. Dizem que não há mães incógnitas, mas foi o que eu fui durante dez anos. Está-me atravessado..E tiveram o nome do pai? Nem nome da mãe nem de pai. Não havia divórcio e eu não ia deixar os meus filhos com o nome de outra pessoa. O pai, que ainda é vivo e que conheci na Queima das Fitas do Porto - tivemos uma grande paixão -, também tinha sido casado, mas estava separado. Soube do casamento depois, pronto, lá vai ela outra vez para a cama doente, com o papá e a mamã aos gritos..O que é que aconteceu à relação? Tive dois filhos porque quis ter os dois filhos. Ele era engenheiro e resolveu ir para África. Imagine eu, com 23 anos e dois filhos, a ir para Tete [Moçambique], viver numa tenda no mato. Disse-lhe: "Vá você!" Lembro-me de o meu pai lhe dizer: "Ó António José vai levar esta miúda com dois filhos para o mato?" Não fui. E ele obliterou completamente que tinha filhos, só anos depois veio a Portugal conhecer os filhos..Esqueceu-se dos filhos? Esqueceu-se mesmo. Nem um lápis, um caderno, um bibe, um calção, um brinquedo. Mandou uma vez uma boneca por uma amiga, a minha filha pegou nela e disse: "A minha mamã deu-me uma mais bonita." Criei os dois filhos sozinha, por isso, trabalhei, trabalhei, trabalhei. Nunca recebi um tostão nem fui para o tribunal pedir nada. Nunca deu nada, nem em situações muito periclitantes em que tive de pedir ajuda..Quando deixaram de ser pais incógnitos? Quando a Eduarda ia fazer o exame da 4.ª classe, tinha 10 anos, precisava da cédula para a inscrever. Eram muitos os filhos de pais incógnitos e houve um ministro que decidiu que todas as crianças em Portugal tinham de ter o nome do pai e o da mãe. Havia o Registo Secreto, que era um livro imenso, preto, em que se punha o nome do pai e da mãe - em caso de morte -, nas cédulas pessoais não tinham nem pais nem avós. Eu sabia que podia dar prisão, mas disse que perdi as cédulas deles, acho que a senhora da conservatória percebeu. Foi ao livro dos registos secretos e começou a ler: "Maria Eduarda de Macedo Coimbra Mano, filha de..., neta paterna de..., neta materna de..." Só dizia para mim: está quase, está quase. Agarrei naquilo, fui para a casa dos meus pais, em Alvalade (onde vive o meu filho), e disse: "Está aqui. Consegui!" O meu pai abriu uma garrafa de champanhe e deitou por cima da cabeça dos meus filhos.."Porra, é de mais para uma mulher".E as crianças? Não souberam na altura, achavam que eu tinha sido casada com o pai e me tinha divorciado. Foi a história que a minha mãe lhes contou. Quando a minha filha passa para a faculdade, tive de lhe contar a história para trás, também ao meu filho. A grande frase da minha filha: "Porra, que isso é de mais para uma mulher só." Ela tinha 16/17 anos e ele 14. Foi a primeira vez que ele me pediu um cigarro..Foi vítima de violência doméstica. Conseguiu perder esse medo que sentia? Eu perdi o medo, levei foi muito tempo até ter respeito pelas pessoas. A única pessoa que respeitava era o meu pai. Não tinha feito mal nenhum a ninguém, não me podia divorciar, os meus filhos não podiam ter o meu nome e andei de boné na mão a pedir nas igrejas para batizarem os meus filhos, que só foram batizados quando ela tinha 5 anos e ele 3. Zanguei-me com a Igreja Católica; zanguei-me com o mundo, zanguei-me muito. O meu ar emperiquitado era a forma de fugir àquela mágoa que sentia..A sua defesa foi atacar, lutar. Fui reagindo a tudo dessa maneira, lutando, à custa de muito sacrifício, de muita lágrima e também de muita gargalhada..Tem uma boa gargalhada, de facto. Ainda tenho. No dia em que perder essa gargalhada é porque deixei de ser eu. As coisas foram acontecendo. Depois, aconteceu a Desfolhada....Fiz os filhos com gosto."Eira de milho, luar de agosto, quem faz um filho fá-lo por gosto". Não havia muita gente a querer cantar a letra do Ary dos Santos. Não. Lemos o texto da Desfolhada na Galeria 48, que era uma boîte lindíssima na Avenida da Liberdade, onde é hoje uma pastelaria, eu, o Zé Fialho, o Henrique Mendes, o Thilo [Krasmann]. O Zé Mensurado traz a letra num papel de embrulho, eu não tinha sido convidada para o festival, sou a quarta escolha. Lemos "quem faz um filho fá-lo por gosto", e pergunto: "De quem é?" Respondem-me que é daquele poeta comunista que faz versos para a Amália. Comento: "Está no festival? E então a censura não vê nada?" Mais tarde, liga-me o João Martins, da 23.ª Hora, a dizer que me iam pedir para fazer uma substituição, aceitei. Tinha um restaurante de má memória, O Candelabro" e aparece a equipa toda, o Nuno Nazareth Fernandes, o Zé Carlos Ary dos Santos, a equipa toda da Valentim de Carvalho. Olho para a letra e vejo o que já tinha lido há 15 dias. Perguntaram-me: "É capaz de dizer isto?" Respondi: "Sou, porque fiz os filhos com gosto, de quem quis e quando quis.".Contaram-lhe que era a quarta escolha? Eu sabia que não tinha sido logo escolhida. Escolheram primeiro a Elisa Lisboa, que recusou, depois a Madalena Iglésias que ainda gravou sem esse verso e o Zé Carlos interditou o disco. A terceira foi a Mimi e o Zé Carlos não quis. E perguntou: "Onde é que está aquela mulher muito grande, que tem aquela voz muito grande?" Agora, o que passei por causa disso... fui insultada em restaurantes, de pega para cima..Impediram-na de fazer alguma coisa? Não, quando me apaixonei, apaixonei. Por exemplo, pelo senhor Henrique Mendes, um caso muito discutido no país, até houve uma reunião de ministros por causa disso..Não eram os dois livres na altura? O Henrique estava separado de uma senhora que nunca conheci e vivia em casa da mãe. Havia uma revista, a Flama, que era evidentemente católica, e um dia saio para a rua e vejo um burburinho que não estava a perceber. Entro na papelaria e vejo o título: "Locutor da televisão perdido pelos olhos verdes". Disse : "Estou desgraçada." Andávamos a fugir há dois anos, encontrávamo-nos ao virar da esquina, íamos em comboios separados quando viajávamos..Isso também dava algum picante... Então não dava? Havia uns espetáculos às 18.00 no Monumental com a Madalena, a Alice, eu, o António Calvário, o Artur Garcia, apresentados pelo Henrique. Nesse sábado, era uma comoção. A Maria Leonor chorava, o Ferrer Trindade tinha uma lágrima, o Vasco Morgado (pai) perguntava: "E agora, como é que vai ser?" Disse ao Henrique para me apresentar e não sair do palco, assim foi, um grande silêncio. Ficámos os dois, de frente para o público, tínhamos as duas mãos caídas e, instintivamente, demos a mão. Levantou-se tudo a gritar "Bravo" e a bater palmas. Uma cena de filme....Uma cena de filme....Falta esse filme, porque já teve um musical, era preciso muita coragem. Sim, porque elas achavam que todos os namorados e maridos se iam apaixonar por mim. Eu ignorava, e trabalhei em todo o lado, muitas vezes com as condições mínimas, em boîtes, cabarés, com homossexuais, bailarinas, com gente da noite. Toda a gente sempre me respeitou, exatamente porque eu também os respeitava..Como é que são os seus camarins agora? Exige alguma coisa? Não exijo nada. Não sou capaz de comer antes de cantar. Não vale a pena. Há sanduíches, fruta, uma garrafa de água e uma garrafa de whiskey, porque toda a gente sabe que eu bebo um golo depois de cantar. Claro que eu não bebo uma garrafa. Quem bebe? Os músicos, os técnicos....A Simone tem a fama e eles têm o proveito. Com certeza, absolutamente. É uma coisa de alguns anos para cá. Não me ofereçam um chazinho, é porque a senhora é velha. Se o fazem, respondo: "Não quero chá, quero um café, um JB em copo alto com três pedras de gelo e um cigarro!".Tem algum ritual antes de entrar em cena? Não. Tenho de estar ali dez minutos, um quarto de hora, sem me dizerem nada. Tenho um medo horrível, o meu coração bate..Ainda agora? Um horror, é cada vez pior. Só peço que durante um quarto de hora não falem comigo..Em que momento perde esse medo? Tenho de perceber como é que está o público. Tenho de encontrar as pessoas e isso sente-se perfeitamente, sente-se a respiração, os olhos. Canto a primeira cantiga e a segunda e, depois, sei que estão comigo. Conto histórias sobre o teatro, coisas que aconteceram comigo e faço isso com muita frequência, as pessoas gostam..Teatro que começou a fazer só mais tarde. O primeiro teatro a sério tinha 42 anos e foi com o Armando Cortez, A Tragédia da Rua das Flores. Um dia chego a casa - moro aqui há 45 anos - e digo ao Varela: "O Armando ligou-me a perguntar se queria fazer a Genoveva da Tragédia do Eça de Queiroz." Ele responde: "Você não tem ontem de atriz para fazer isso." Eu disse: "Quem?" Repetiu: "Você não tem ontem de atriz para fazer esse papel e vai estragar as suas cantigas todas." Nesse momento, decidi que ia tentar. Disse ao Armando Cortez que ia ensaiar durante uma semana e, se ele achasse que eu não era capaz, tinha de me dizer na cara e na frente de todos..O que Varela Silva queria dizer era que não tinha experiência? E não tinha, ia para as coisas com o espírito de tentar fazer. Um dia fui ao ABC buscar uns cartazes para um espetáculo e o Manuel Nunes perguntou-me se queria fazer a revista. Eu tinha feito pontinhas, a cantar como atração nacional, convida-me para primeira figura e diz-me que sou capaz..Uma "simonada".É uma mulher com sorte ou que sabe aproveitar as oportunidades? Eu sei aproveitar as oportunidades, mas tenho de chegar à conclusão de que tenho tido muita sorte. E tenho de ser dirigida, se não for dirigida faço uma "simonada" e, quando faço uma "simonada", sei que é grave..O que é uma "simonada"? Um gesto mais exuberante, uma história, um olhar, um emperiquitanço, que eu não sou, mas as pessoas acham que sou. Sou capaz de comer no chão, desde que esteja limpo. Agora não venham ter comigo com determinadas atitudes, sobretudo quando vejo pessoas tratarem pior a senhora que traz o café, o técnico de som. Vou aos arames. A minha vida foi resolvida assim..Tem de estar sempre a provar alguma coisa, até na doença. Teve dois cancros. Um só não dava. Tenho um neto que diz que tem uma avó biónica, tenho quatro próteses. Eu não sou tão forte como as pessoas dizem. A minha coragem é o medo. No segundo cancro, estava a fazer radioterapia e a telenovela ao mesmo tempo, tive a sorte de não ter de fazer quimioterapia. Fiz 35 ou 40 sessões de radioterapia e ninguém deu por isso, só as pessoas que sabiam é que deram conta, como a Fernanda Serrano..Foram piores esses momentos ou quando perdeu a voz, a seguir à Desfolhada? São coisas completamente diferentes. Quando perdi a voz, só pensava no que ia fazer à minha vida. Tinha uma filha com 10 anos, um filho com 8 e não podia trabalhar. Perdi os agudos e estive três anos sem cantar. Fiz promoção de brinquedos, depois, comecei a fazer um programa de rádio à noite. Fui à [Rádio] Peninsular para rebater o que o Marques Vidal disse numa entrevista sobre mim. No fim, perguntaram-me se queria fazer rádio e disse que sim, o dinheiro fazia-me imensa falta. Acham que sou rica e é mentira. Sempre fui remediada, às vezes um bocadinho mais para cima, outras vezes muito para baixo, nessa altura, lá iam as joias para o prego..Chorei baba e ranho.Mas considera que tem vivido bem a vida? Sim, tenho. E tenho obrigação de ser uma mulher feliz. Consegui passar dois cancros, tenho uma data de próteses, estou toda cosida a ponto cruz. Fui aceitando as coisas, é a única forma de se conseguir ultrapassar. Claro que chorei baba e ranho..Continua muito bonita e ao vivo ainda mais. [Risos] Eu engano muito. Peguei-me com um taxista não há muito tempo. Não acreditava que a minha filha tivesse 60 anos e eu 82. Perguntei-lhe se queria ver o cartão de cidadão, nasci a 11 de fevereiro de 1938..Nunca teve problema em dizer a idade? Não vale a pena, se eu tenho uma filha com 60, não posso ter 70, não tive a criança aos 10. Não digo que envelhecer seja fácil, não é. Há que aceitar as pequenas ou grandes maleitas, ando devagar, coxeio um bocadinho porque preciso de pôr uma prótese no outro joelho; tenho dores porque tenho artroses. Não vale a pena dizer que não tenho. Agora, não ando a queixar-me a toda a hora. Detesto o "então estás melhorzinha?"..Vai fazer 25 anos que está sozinha, que o Varela Silva morreu. Tinha 57 anos..Como é que se vive assim? Não é fácil. Nos primeiros três ou quatro anos chorei muito nesta casa, sem ninguém saber, fechada na casa de banho..Diz que foi o homem da sua vida. E a paixão pelo Henrique Mendes? Esses foram sete ou oito anos vividos intensissimamente..Sempre a viver tudo intensamente? Ou é ou não é! Aquelas coisas do parece que é não dão para mim. Não tenho jeito..Perdoo, mas não esqueço..Perdoa facilmente? Perdoo, mas não esqueço. Levo muito tempo até chegar ao limite, mas quando isso acontece bem podem cair ao pé de mim que eu digo: "Levante-se.".E se lhe pedissem desculpa? Não desculpava. Magoaram-me de mais, fizeram-me muito mal. Como tenho grande dificuldade em perdoar à Igreja Católica..Ainda por cima mora no Arco de Jesus... O nome é lindo, Travessa do Arco de Jesus..Fazer um musical com a nossa vida deve ser brutal. Como é que recebeu a notícia? Achei que estava tudo doido e que não ia resultar. E resultou. Quando o Paulo me disse que íamos para o Coliseu do Porto, achei que não estava bom da cabeça e fizemos dois coliseus. Só não continuei porque estava com muitas dores e já não aguentava..Foi a melhor homenagem que lhe fizeram? Sim, sim. Foi uma grande homenagem..Que outros momentos da sua vida destaca? A Desfolhada, a canção que levei ao Festival da Eurovisão, em 1969, é um deles. As condecorações do Presidente Sampaio - a segunda foi dada pelo Cavaco -, mas eu adoro o Sampaio. Mas a Desfolhada foi algo de extraordinário, foi em Madrid, e veio país por país pedir-me desculpa devido às votações. Estava sozinha, não havia campanhas de marketing. Eu só chorei quando estava sozinha no quarto. Fiquei em 13.º lugar..A "Desfolhada" foi extraordinário.Disse recentemente que a ministra da Cultura não conhecia os artistas. O que é que a ministra precisa de saber? Precisa naturalmente de conhecer não só o que está em cima do palco, mas tudo o que está por trás do palco. O medo que a gente tem, os dias em que não temos dinheiro. Tiraram-nos a carteira profissional..Aconteceu quando? Há meia dúzia de anos. Tive carteira de atriz aos 35 anos, não fiz o Conservatório mas tinha as 1500 representações necessárias. Trabalhei em tudo o que era teatro pelo país e, depois, somos prestadores de serviços. Deem-nos outra vez a carteira profissional, como têm os médicos, os engenheiros, etc..Vamos terminar com aquela frase sua de que gosta tanto. "Está tudo bêbado"? O mundo está todo bêbado. Há dois bêbados muito grandes que são o Bolsonaro e o Trump, podiam ficar bêbados de uma vez. Não consigo perceber. Como é que é possível? O Bolsonaro e o Trump, por amor de Deus? Nos EUA morrem mais de mil pessoas por dia devido à covid-19, o que é isto?