Um poema no meio do caminho de Drummond de Andrade
"No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho." Com estes versos começava o poema que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) publicou na Revista de Antropofagia, em 1928, e dois anos depois incluiu no seu livro de estreia, Alguma Poesia. Logo, logo, o poema não teve grande impacto. Mas quando, em 1934, o poeta brasileiro ocupou o cargo de chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública, os críticos da sua política lembraram-se de usar este poema contra ele.
Foi considerado uma "bobagem". "O sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio", escreve Gondin da Fonseca em 1938. No jornal Folha da Manhã, em 1942, critica-se o uso do verbo "tinha" em vez de "havia", o que é considerado "brasileirismo grosseiro, erro crasso de português". Os professores, quando tinham que dar um exemplo de má poesia, usavam o texto de Drummond. Mas, se uns o consideravam demasiado simples e repetitivo, outros viam nele um novo caminho - o do Modernismo. Um poema que falava para as pessoas, "o poema que todos nós queríamos ter feito". O melhor exemplo dos tempos novos que se viviam em todas as artes.
No meio do caminho é um poema tão simples - são dez versos, 61 palavras, das quais apenas dez não se repetem, quase como uma lenga-lenga de crianças. E, no entanto, com essa simplicidade define uma situação limite, aquela situação que marca uma vida, que a muda, que nunca mais será esquecida. A pedra no meio do caminho.
Divertido com este bate-boca, Drummond foi guardando tudo o que sobre aquele poema se disse e publicou. Críticas, comentários, piadas. De gente importante e de gente menos importante. E, depois, reuniu esses textos num outro livro, Biografia de um Poema, editado em 1967, no qual organizou as críticas em capítulos com nomes como "Muita Gente Irritada", "Das Incompreensões" e "Popularidade, Mesmo Negativa".
É esse livro que está na origem do espetáculo que António Pires encena agora. A ideia começou a nascer nas conversas com Cassiano Carneiro, ator brasileiro residente em Portugal, e colaborador habitual do Teatro do Bairro. Alexandre Oliveira, produtor da Ar de Filmes, que gere o teatro, trouxe a Biografia de um Poema. Cassiano juntou a esta conversa um outro amigo do Brasil, o ator Chico Diaz, que se dispôs a "empurrar para lá" mais uns projetos de telenovelas e filmes para passar uma temporada a fazer teatro em Portugal. E a eles juntar-se-ia mais tarde a atriz Rita Loureiro.
"Nunca trabalhei este poema em palco nem sei se alguma vez foi feito, achei a ideia genial", conta Chico Diaz. "A educação no Brasil não tem sido uma prioridade. Talvez passemos pelo modernismo numa aula de português mas não sei se todo o mundo conhece este poema", lamenta, ilustrando com o facto de o livro Biografia de um Poema, que foi reeditado em 2010 por Eucanaã Ferraz, se encontrar ausente das livrarias. Para o ator, No meio do caminho "é um poema referencial, estandarte do modernismo e que foi o mais apedrejado, digamos assim. Com pouquíssimas palavras, sem rima, sem compromisso com a forma, mas com um estado de alma claro e evidente. Um poder de síntese enorme. Isso incomodou muita gente, deixou as pessoas desnorteadas."
António Pires quis sublinhar isso mesmo neste espetáculo: "As pessoas têm muita resistência às coisas novas, isso acontece ainda hoje. Muita gente disse mal do poema, mas apesar disso e ele transformou-se num sucesso, toda a gente sabia o poema que é muito simples, e brincava com ele. O espetáculo tem essas coisas mais brincadas, é muito lúdico e provocatório. E tem outras mais de reflexão - sobre o modernismo e sobre o desconhecido, as novas formas de estar. Discute-se poesia e outras formas artísticas." Com as palavras de Drummond e com outros textos, como o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, discute-se o que é um bom poema e o que é a beleza, o que é a arte e para que serve, qual o papel do público numa obra de arte, seja um poema ou um espetáculo.
"A Gertrude Stein tem uma frase que eu utilizo muitas vezes: ela queria que os seus espetáculos fossem como uma paisagem. Quando olhamos para uma paisagem, gostamos sem conseguir explicar porquê", diz António Pires. As discussões sobre o significado e sobre a forma do poema não nos ajudam a percebê-lo melhor. Como se ele nos escapasse constantemente. Como escreveu Eduardo Prado Colho, em 1968: "Os versos de Drummond tornam-se insuportáveis - e ao mesmo tempo sentimo-nos possuídos por eles, habitados por eles."
Biografia de um Poema, de Drummond de Andrade
Encenação de António Pires
Teatro do Bairro, Lisboa
Até 8 de outubro
Bilhetes: de 6 a 12 euros