Um bailarino, uma bailarina, um piano e um pianista. Assim é Duelo, o espetáculo que o bailarino Thiago Soares e o músico Marcelo Bratke, ambos brasileiros, estrearam no ano passado no Rio de Janeiro, e apresentam nesta quarta-feira no Teatro Tivoli, em Lisboa..Apesar do título, Duelo é, na verdade, um diálogo. "O que faz a magia desta apresentação é a nossa conversa entre a dança e a música", diz Thiago Soares. "Não é um pianista que toca para acompanhar um bailarino, é uma verdadeira interação." Com uma banda sonora que vai de John Cage a Heitor Villa-Lobos, o espetáculo conta, em cada cidade onde se apresenta, com a participação de uma bailarina convidada: aqui, será Filipa de Castro, da Companhia Nacional de Bailado. Os primeiros ensaios dos dois aconteceram no início do ano em Londres, onde Thiago Soares vive desde que, em 2002, entrou para o Royal Ballet..Do hip hop para o ballet.Thiago Soares começou a dançar em criança por influência do irmão mais velho, que fazia dança de rua, no bairro onde moravam, a Vila Isabel, no Rio de Janeiro. "Eu ia meio de mascote", recorda. "Eu queria muito ser como eles." Aos 9 anos, começou também a ter aulas de acrobacia numa escola de circo, como atividade extracurricular, para aperfeiçoar os passos de hip hop e breakdance e aprender outros movimentos que foi para Centro Dança Rio. Logo deu nas vistas. Um dia, aos 15 anos, o professor propôs-lhe ir fazer uma audição para uma escola de ballet. "Ele disse-me: Você tem tudo para ser bailarino. Tem os dotes, tem o corpo, tem tudo." Além disso, no ballet, há sempre muitas meninas e poucos meninos, "então eles estavam muito abertos à entrada de rapazes, mesmo que não tivessem experiência de ballet ou que não fossem tão novos assim, como era o meu caso", conta Thiago..Aos 17 anos integrou o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. "Ao início eu não fiquei muito contente. Eu queria era dançar hip hop e jogar bola." Nos primeiros tempos, lembra, ensaiava com umas sapatilhas cor-de-rosa, pois não as havia de outra cor. Ele era o único rapaz. Sentia que havia preconceito entre o grupo de amigos, mas não em casa. "O meu pai não tinha qualquer problema com o facto de eu ser bailarino mas ele perguntava: isso é profissão? Vai ganhar dinheiro com isso? Penso que essa é a preocupação de todos os pais. Porque nós não conhecíamos nenhum bailarino, não sabíamos como era a vida de um bailarino. Para mim, o ballet era uma coisa muito distante, só tinha visto na televisão. Lembro-me de ter visto o Nureyev e pouco mais. Só depois de entrar é que comecei a conhecer. As professoras levaram-me a ver espetáculos e mostraram-me vídeos.".Foi preciso tempo e muito trabalho. "Fui descobrindo esse bailarino em mim", conta Thiago Soares. "Comecei relativamente tarde. Mas eu era a esperança deles, eles investiram muito em mim. Depois de sete meses fazendo aula de dança, comecei a acertar os passos e a dominar minimamente o meu corpo.".Salvo pela dança.Nessa altura, um outro acontecimento deu um impulso inesperado na sua carreira: "Os meus pais separaram-se e o meu mundo como que desmoronou. Venho de uma família de classe média baixa e estava-me tornando um jovem meio perdido, meio sem rumo. E a dança apareceu no momento certo. A dança deu-me a ordem e a disciplina de que eu necessitava naquele momento. Dediquei-me por inteiro." O jovem Thiago encontrou na dança o seu "projeto mágico", como ele diz. Num momento em que a sua vida parecia fugir ao seu controlo, ele tinha ali algo que ele podia dominar: bastava-lhe impor objetivos, depois treinar, treinar muito, e, por fim, os resultados iriam aparecer. "A dança tornou-se o meu plano brilhante. Quem vai mandar nesse castelo? Sou eu. Tijolinho a tijolinho. Posso não ter mais nada mas pelo menos tenho o meu corpo.".No Rio de Janeiro, Thiago Soares chegou a bailarino principal e fazia protagonistas nos bailados mais importantes, como O Lago dos Cisnes, Giselle, Dom Quixote ou La Bayadère: "Mas aquele ainda não era o meu lugar." Queria mais. Já tinha alguns prémios internacionais, já se tinha apresentado em alguns teatros importantes noutros países, como por exemplo no Kirov Ballet de Moscovo, e então decidiu candidatar-se ao Royal Ballet, de Londres. "Fiz um pedido de audição e passei no teste. Decidi vir. Mesmo tendo de dar um passo atrás, pois entrei para o corpo de baile. Mas senti que era importante começar tudo do princípio."."Abdiquei de tudo para dançar".Isto aconteceu em 2002 e, desde então, Thiago Soares tem-se mantido no Royal Ballet, onde desde 2006 é primeiro bailarino. Logo no primeiro dia em que chegou à companhia, conheceu a bailarina argentina Marianela Núñez com quem acabaria por namorar e casar (e depois divorciar-se). Na altura era o único no Royal Ballet que falava português. Hoje, já há outros brasileiros e também um português, Marcelino Sambé, seu amigo - foi Marcelino quem lhe falou de Filipa de Castro, a bailarina portuguesa que o acompanha em Duelo..Ser bailarino ali foi a concretização de um sonho mas dá muito trabalho. Há aulas na companhia, os ensaios para os espetáculos, as horas passadas em estúdio, sozinho, melhorando alguns pormenores técnicos, e depois ainda o ginásio para manter a forma física. E como tem sempre outros projetos paralelos, Thiago ainda leva trabalho para casa. "Abdiquei de tudo, da minha vida inteira, dediquei-me muito à dança", admite, aos 37 anos. "Quando você entra nesta carreira, você sabe que vai se machucar e vai ter momentos em que vai ter de trabalhar com a dor, a dor é como uma amiga, está sempre ali. E também sabemos que é uma carreira que tem um prazo de validade. Não dá para envelhecer fazendo ballet clássico." Mas não é preciso parar de dançar, nada disso..E agora, Thiago?.Embora preveja manter-se em Londres até, pelo menos 2021, no final de julho próximo, Thiago Soares vai deixar de ser primeiro bailarino e passa a ser bailarino principal convidado. Ou seja, vai continuar no Royal Ballet fazendo alguns papéis mas vai ter mais liberdade para, cada vez mais, ir criando os seus próprios projetos, mais autorais. "No repertório clássico já fiz quase tudo, e agora? Quero algo mais. Vou fazer 38 anos. O que é que eu quero fazer? O que é que eu quero mostrar aos outros? Estou à procura, ainda. Quero fazer algo que seja meu e não apenas as coreografias de outras pessoas. Por agora, ando coreografando de forma humilde, estou desenvolvendo a minha autoconfiança como coreógrafo. Mas sei que é isso que quero continuar a fazer.".A história deste bailarino é tão boa que até já deu origem não a um mas a dois filmes. Primeiro Bailarino é um documentário de Felipe Braga que mostra o dia-a-dia de Thiago Soares na companhia inglesa. O filme estreou-se no ano passado na HBO Brasil:.Além disso, está também em fase de produção um filme biográfico, Coreografia da Vida, com realização de Marcos Schechtman, em que o papel do bailarino será interpretado pelo ator Matheus Abreu.