The Walking Dead: "Alpha é Bolsonaro, é Trump. É esse tipo de vilã"

O ator Avi Nash, que protagoniza Siddiq na série The Walking Dead, esteve no Comic Con a falar com os fãs e a dar autógrafos. No meio da azáfama o ator falou com o Diário de Notícias.
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Insiste falar em português numa mistura de pronúncia brasileira com palavras em espanhol, salta da cadeira da moderação a decorrer no Golden Stage do Comic Con a propósito da estreia da 10.ª temporada de The Walking Dead a 7 de outubro e senta-se à beira do palco para ouvir melhor a pergunta de um fã no público, aceita que outro fã tire ali uma selfie consigo apesar de haver um momento reservado para isso. Avi Nash tem de jovialidade o que Siddiq tem de bondade, no que ator e personagem possuem de contagiante.

Avi Nash tem 28 anos, formou-se em ciências computacionais em Stanford, andou pela América Latina, Madrid e Londres, onde se graduou em artes dramáticas, e divide hoje o seu tempo entre Los Angeles, a capital inglesa e Lisboa. Siddiq surgiu pela primeira vez na 8.ª temporada da série e tem vindo a ganhar protagonismo na história.

A trama há muito que deixou de ser uma luta de humanos contra zombies para ser uma luta de humanos contra humanos e o grande super-herói, Rick, desapareceu e deu lugar a uma grande super-vilã, Alpha. Em Julho, foi lançado o teaser da adaptação da série a cinema, uma trilogia cujo primeiro filme está a ser promovido como "The Walking Dead - Rick Grimes Returns", mas não tem data de estreia anunciada.

Rick vai voltar à série?
Para Siddq, e para todo o mundo em The Walking Dead, Rick está morto. Não sabemos. Logo, eu, Avi, também não sei. Mas no filme vai estar.

O Avi também vai entrar no filme?
AN: Não sei.

Na série, com que antecedência é que os atores recebem o guião?
Três, quatro dias antes de filmarmos.

Nunca sabem o que vem a seguir?
Sabemos algumas coisas da temporada inteira logo no início. Dizem-nos quais são os pontos-chave da trama. Por exemplo, que a 10ª temporada é uma guerra contra Alpha. É uma coisa que todo o mundo já sabe mas eu soube antes. Dão-nos também algumas pistas relativas à personagem, mais do que isso não sabemos. Não sabemos quem vai falecer, quem vai namorar, quem vai fazer diligências. E este ano as cenas foram filmadas fora de ordem. Foi muito trabalho, por parte dos atores, dos guionistas, para ligar tudo.

Ao longo das temporadas, a série passou de ser uma luta de humanos contra zombies para passar a ser uma luta de humanos contra humanos.
Completamente, humanos contra humanos. Os zombies... Já sobrevivemos a tudo isso, não há problema em ir passear para a floresta e haver zombies. Já somos todos mestres de artes marciais. Como já não há balas, há que saber como lutar. Então, todo o mundo sabe lutar. Agora, o conflito é entre humanos, em que um dos grupos de humanos pensa que o nosso grupo está completamente equivocado, que a nossa vida não tem valor, que não nos pertence.

Alpha não permite modos de viver e pensar diferentes dos dela. É a nova grande vilã.
É terrorista. Está a lutar por uma ideologia que não aceita nada além da sua própria tribo. Ela é Bolsonaro e Trump. Ela é esse tipo de vilã.

Que importância tem uma série como esta nos dias que correm?
Eu acho que, se for boa, qualquer série tem de ter impacto na vida real. Apesar de ser ficção, de ser de zombies, ou de dragões como em A Guerra dos Tronos, irá ressoar qualquer coisa de real na audiência. Para nós, esta nova temporada é de alguma forma política. Alpha não aceita mais ninguém.

Qual o papel da sua personagem no combate ao mal?
Para Siddiq é muito complicado, porque ele sofre de Transtorno de Stress Pós-Traumático. Ele está a lutar muito contra si mesmo, porque a qualquer momento ouve alguma coisa, sente alguma coisa, que está na sua memória. Está a lutar muito para controlar as suas emoções, mas é muito difícil. Está a lutar muito para reconquistar a pessoa que era antes. E isso é muito difícil porque Alpha está sempre presente. Ela não fez o empalamento e foi embora. Ela fez o empalamento e ficou, ficou lá na fronteira. Para ele, essa ameaça está sempre presente. Sente ameaça fora e sente ameaça dentro dele.

As pessoas boas tornam-se más. A série trabalha bem a condição humana?
A série mostra isso e mostra, nesta próxima temporada, que a vida consegue ser muito difícil. Antes tratava-se mais de super-heróis, sabíamos sempre que Rick ia vencer porque ele era o nosso super-homem. Mas agora não há super-homem, não há Rick. Agora, há conflito entre as nossas amizades, porque ninguém sabe como derrubar Alpha, como lutar contra ela. O que vai revelando falhas.

O que aprendeu, como pessoa, sobre relações humanas, desde que participa na série?
Posso dizer que com Siddq aprendi muito a ter paciência para com os outros. Não se trata de otimismo, mas de procurar o lado bom das pessoas. Como Avi, sou muito pessimista. Sou do tipo latino, do género "se dizes disparates, não interessas". Siddiq oferece outra chance, dá outra oportunidade. Podes fazer porcaria com ele, mas ele vai conseguir ver o que tens de bom. Essa é uma característica humana que não tenho muito mas estou a tentar adotar.

Com a intolerância religiosa que existe hoje no mundo, que repercussão é que o facto de Siddiq ser muçulmano pode ter no público?
Há muita gente a assistir a The Walking Dead, pessoas de todas as religiões, de todos os países, de todas as línguas. Imagino que haja muita gente que veja The Walking Dead e que não goste de muçulmanos. Ou que não goste de pessoas com pele morena como eu tenho. Mas pode ser que, ao assistirem a The Walking Dead, essas pessoas gostem muito do Siddiq. Isso cria um conflito nelas. Um conflito que ajuda as pessoas a reformularem a sua opinião. É por isso que a arte é importante. A arte serve muitas vezes para emocionar, para ser desfrutada, mas tem também a capacidade de fazer as pessoas pensar de forma diferente.

Tem um papel político?
Político mas também o de desconstruir o preconceito. A arte vai tocando, sem nos darmos conta. Isso, para mim, é muito importante. Espero que Siddiq possa mudar a opinião de alguma pessoa relativamente ao seu preconceito. Ou por exemplo, a Mishonne, o Daryl. Daryl chegou à série como um tipo de colarinho vermelho, pode continuar a ser um colarinho vermelho, mas é muito mais do que isso. Para as pessoas que tenham uma opinião formada acerca do que é um trabalhador de colarinho vermelho, Daryl vai contrariá-la. The Walking Dead trabalha isso há muitos anos e muito bem.

De que forma se preparou para fazer de Siddiq?
Para mim, as palavras são o mais importante. Há uma diferença entre antes e depois de me formar em teatro. Antes, era um arquitecto que fingia ser actor. As palavras estavam lá mas estava a centrar-me muito na emoção. Depois de estudar representação, de trabalhar mais, de praticar mais, descobri que as palavras são muito fortes. Se seguirmos as palavras, elas vão revelando tudo. Hoje concentro-me muito nelas, porque é que Siddq vai dizer uma palavra e não outra. A representação é, de alguma forma, revelar. Depois de três anos, conheço muito bem Siddiq, mas vem sempre algum guião que me surpreende.

Dá por vezes com Siddiq a entrar pela vida do Avi?
A barba!

Não usava barba?
Às vezes, sim, mas durante o ano inteiro não. Eu acho que é o que disse antes: o facto de ter mais paciência com as pessoas. Siddiq é muito amável, muito carinhoso. Eu por vezes não sou.

O que podemos esperar de Siddiq na 10.ª temporada?
Siddiq é testemunha do terror de Alpha. Acho que vai ser o seu papel principal, porque ele pode dizer claramente o que se passou e como é que ela é. Não têm que adivinhar, ele já sabe. A nível do elenco, vamos, a partir da questão toda da paranoia, focar-nos muito nosso trauma psicológico. Nestes dez anos, a série não focou muito isso: era mais horror, ação, terror. Mas agora vamos falar de psicologia, até porque uma das armas de Alpha é a guerra psicológica. Terror, terrorismo. Siddiq exibe os efeitos disso, dessa guerra permanente. É o único, porque o resto foi morto.

Como é que gostaria que esta história terminasse?
Espero que todos se curem, que deixe de haver zombies. Mas isso é muito otimista, para mim. Por isso, acho que esta série vai terminar não com desesperança mas com as personagens a decidirem ir embora, ir para Oeste. No trailer da 10ª temporada, Carol diz a Daryl: "por que não vamos juntos para Oeste?" Acho que a humanidade vai estilhaçar-se, cada um vai focar-se na sua família para sobreviver porque não sabemos como conquistar o mundo. Não, isto é muito deprimente... Vão construir um barco muito grande e vão até à Europa investigar se o vírus chegou lá ou não. Vamos todos para Portugal.

Arca de Noé?
Arca de Noé, exatamente. Arca do Daryl.

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