The Dropout: é possível enganar todos o tempo todo

Elizabeth Holmes, a mais jovem empreendedora milionária, que foi capa de revistas e o ai-jesus de Silicon Valley, já tem uma série sobre a sua ascensão e queda estrondosa. <em>The Dropout: A História de uma Fraude</em> fica disponível hoje no Disney+, com uma brilhante Amanda Seyfried.
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Vestir de preto e falsear o tom de voz. Eis dois truques de apresentação que podem fazer muito pelo futuro de qualquer jovem empreendedora - se não tiver telhados de vidro que comprometam esse futuro. Foi assim que a americana Elizabeth Holmes fez o seu caminho e enganou meio mundo, a certa altura já não representando coisa alguma para além da persona criada. Ou, para simplificar, são estas as marcas que ditarão a memória da sua imagem pública. "É disso que toda a gente continua a falar, claro: a voz, a gola alta [preta]. Mas e a cadência? E o seu modo de andar?

Qualquer atriz teria aqui uma arca do tesouro", sublinha, em entrevista à Vanity Fair, Amanda Seyfried, que lhe vestiu a pele. E em quem se inspirou a rapariga para moldar o figurino? "Ela estudou Steve Jobs e o modo como ele se comportava. Acho que ficou obcecada por pessoas poderosas e omniscientes." Isso é mais do que certo.

Estamos a falar da empresária nomeada em 2015 pela revista Forbes como a mais jovem milionária "self-made" do mundo, que o conseguiu com uma startup biomédica avaliada em nove mil milhões de dólares, e que no início deste ano o tribunal considerou culpada de várias fraudes, com a sentença a ser conhecida em setembro. Portanto, ainda o processo não acabou e já muita informação se produziu sobre a ex-CEO da Theranos, desde livros, dois documentários, um deles na HBO Max (The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley), a podcasts, também um deles na origem da série de oito episódios The Dropout: A História de Uma Fraude, que hoje fica disponível no Disney+. E se começamos pela questão da imagem fabricada desta mulher é porque a performance da vida de Elizabeth Holmes é tudo o que uma série dramática ainda pode acrescentar ao que já se explorou deste caso.

A história é francamente espantosa e ridícula: uma "jovem-prodígio", inspirada por Steve Jobs e pelo Yoda de Star Wars, larga os estudos de engenharia química na Universidade de Stanford, e com apenas 19 anos funda um laboratório de análises de sangue, levando a marca (Theranos) aos píncaros do investimento, apesar da tecnologia na base da sua "invenção"... não funcionar ("funcionou" uma vez, na fase experimental, quase por acidente, mas nunca mais aconteceu e tudo o que se fez depois foi falsificado). Holmes assumiu para si o papel de profeta. Alegava que, através de uma única gota de sangue, a sua máquina seria capaz de fazer um exame de diagnóstico simples (sem agulhas!) e revolucionário. E, num primeiro momento, ainda se acredita que as suas intenções fossem boas, mesmo que já a tenhamos ouvido dizer que "não quer ser presidente dos EUA; quer ser milionária". Mas à medida que o monstro cresce, devora tudo o que de residualmente bom poderia existir.

A questão mais perturbadora, e que torna a série instigante, é a forma como Elizabeth Holmes se moveu a passos galopantes para mascarar a mentira e manter a empresa financiada, ascendendo quase de um dia para o outro como o rosto feminino de Silicon Valley. Porque não se trata apenas do jogo perigoso da sua parte - que partilha culpas com o associado Sunny Balwani -, mas da facilidade com que altas figuras do capital e da política americana caíram no conto do vigário, apesar das inconsistências que iam aflorando aqui e ali. Mais uma vez: a gola alta preta e a voz fake de barítono terão muito que ver com a existência fantasiosa da Theranos até certo ponto. O culto da personalidade de Holmes é o busílis da questão.

Finalmente, a queda deu-se com estrondo quando os rumores de fraude se converteram numa peça do The Wall Street Journal, assinada pelo jornalista John Carreyrou. Depois disso veio o fascínio pelo caso, que é o que está por detrás de abordagens como a desta série.

Criada por Elizabeth Meriwether, The Dropout assenta na fabulosa interpretação de Amanda Seyfried, que consegue equilibrar os elementos absurdos da presença de Holmes com uma não menos estranha fragilidade humana (às vezes parece extraterrestre...). Digamos que tudo passa pela performance dentro da performance, e a maneira como se perde, a dada altura, o rasto da jovem inteligente para vingar a criatura empresarial de olhos esbugalhados e discurso afetado. De resto, as palpitações biográficas estão cá todas, sem rebeldia e com um nível de clareza que é mais do que suficiente para prender a atenção - a história mirabolante basta-se a si própria; só era preciso não estragar.

Na verdade, mais do que corresponder à linhagem dos biopics, The Dropout inscreve-se numa tendência recente de séries sobre startups e vigaristas. A Netflix tem Inventing Anna, sobre Anna Delvey, uma mulher que se imiscuiu na elite nova-iorquina fazendo-se passar por uma herdeira alemã, a Apple TV+ estreou WeCrashed, com a dupla Jared Leto e Anne Hathaway a retratar o casal de cofundadores da WeWork, e há pouco caiu na HBO Max Super Pumped: The Battle for Uber. Na hora de comparar, The Dropout tem a seu favor uma narrativa "vencedora" de ascensão e queda e um elenco sem falhas. Para além de Seyfried, refira-se, por exemplo, Stephen Fry no papel do gentilíssimo bioquímico britânico Ian Gibbons, cuja tragédia pessoal, motivada pela Theranos - não como uma entidade abstrata, claro -, transmite a dimensão do monstro-fraude num cenário com potencial cómico.

Contrariando uma frase de Abraham Lincoln, é possível "enganar todas as pessoas o tempo todo". Ou pelo menos, o "tempo todo" suficiente para ganhar uma bizarra eternidade.

dnot@dn.pt

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