'The Crown': para que serve uma rainha nos tempos modernos?
"Muitas mudanças. Mas aqui estamos nós. A idade raramente é gentil para alguém. Não se pode fazer nada quanto a isso. Só é preciso seguir em frente." A rainha Isabel II está a envelhecer. É ela própria que o admite, logo no início da terceira temporada da série The Crown, quando se confronta com um retrato seu antigo e com o novo retrato oficial. E é com esta frase, dita pela soberana, ainda antes de lhe vermos o rosto, que nos é apresentada a rainha "velha", interpretada pela atriz Olivia Colman, substituindo Claire Foy, que foi a rainha "nova" nas duas temporadas anteriores.
A terceira temporada estreia-se neste domingo na Netflix. Nos novos episódios vamos de 1964 a 1976. O príncipe Eduardo acabou de nascer e a rainha está prestes a celebrar o seu 40.º aniversário. As mudanças não são só no rosto da rainha. No Reino Unido, esta é a época de ouro de James Bond, dos Beatles e dos Rolling Stones. A swinging London está ao rubro, Mary Quant põe as raparigas a usar minissaia, incluindo Emma Peel, a personagem interpretada por Diana Rigg na popular série de televisão Os Vingadores.
Mas, ao mesmo tempo, esta é também a época em que o Reino Unido se confronta com a descolonização de África e do Caribe e perde cada vez mais a sua posição dominante num mundo dividido pela Guerra Fria (e há um espião russo, no palácio) e onde os Estados Unidos assumem o papel de superpotência que põe o homem na Lua. A rainha tem de lidar com um primeiro-ministro mais liberal e menos condescendente para com os luxos reais, Harold Wilson (aqui interpretado por Jason Watkins). E nos anos 1970 os problemas económicos do país agravam-se e com eles surgem conflitos sociais. Para que serve uma rainha nestes novos tempos? Essa é uma das questões que atormentam a rainha Isabel II.
Para Colman, de 45 anos, que acabou de ganhar um Óscar de melhor atriz com a sua interpretação de outra rainha, Ana, em A Favorita, interpretar o papel da rainha Isabel (e ainda por cima "substituir" uma atriz que foi tão elogiada no papel) tem sido um enorme desafio: "Apaixonei-me pela rainha", disse a atriz, que nunca foi simpatizante da monarquia mas que, ao longo destes últimos meses, teve oportunidade de entender melhor a rainha: "Foi-lhe dito, durante toda a vida, para se conter e não mostrar as suas emoções em público. É uma situação impossível. Espero que ela tenha o topo de uma montanha ou outro sítio qualquer, escondido, onde possa libertar-se." A cena mais difícil, admitiu a atriz, foi a do desastre na mina de carvão de Aberfan, em 1966, no qual morreram 144 pessoas (incluindo 116 crianças), quando a rainha se mostrou bastante fria: "Foi muito difícil interpretar alguém que é emocionalmente muito mais forte do que eu. Quando filmámos as cenas com os tributos e as flores e os brinquedos, o realizador dizia 'finge que estás a julgar uma competição de flores' - porque se eu pensasse no que realmente aquilo era, não iria conseguir."
O envelhecimento afeta outras personagens, como o príncipe Filipe, que é agora interpretado por Tobias Menzies (que conhecemos da série Outlander e que foi Edmure Tully em A Guerra dos Tronos), a irmã da rainha, princesa Margarida, agora a cargo de Helena Bonham Carter, e a rainha-mãe que passa a ser interpretada Marion Bailey. Embora haja alguns atores que se mantêm (John Lithgow regressa brevemente como Winston Churchill, que morre em 1965), esta temporada é marcada pelo rejuvenescimento da família real e a entrada em cena de novas personagens: o príncipe Carlos (Josh O'Connor) e a princesa Ana (Erin Doherty).
É também através dos jovens que sentimos o tempo a passar, porque são eles que têm sonhos, paixões e vidas por viver, enquanto Isabel parece cada vez mais rendida ao seu papel de chefe de Estado com poucos poderes e cada vez mais desejosa de passar o seu tempo entre os seus queridos cavalos. Margarida tem um affair com Roddy Llewellyn e acaba por se divorciar. Assistimos à investidura de Carlos, que se torna príncipe de Gales (1969) e se apaixona por Camilla (Emerald Fennell), uma relação que não é aceite pela família.
O drama histórico, criado por Peter Morgan e produzido pela Left Bank Pictures e pela Sony Pictures Television, estreou-se em novembro de 2016. As duas primeiras temporadas receberam 26 nomeações para os Emmys, incluindo para melhor série dramática. As prestações dos atores Claire Foy e John Lithgow também foram premiadas. The Crown tornou-se rapidamente uma das séries de referência da Netflix, embora tenha sido acompanhada por algum criticismo, nomeadamente devido a algumas falhas na história. Apesar de os criadores da série sempre terem defendido que se tratava de uma ficção, baseada em factos reais e feita a partir de muita investigação, mas uma ficção, em setembro passado, o secretário da Casa Real britânica, Donal McCabe, viu-se forçado a fazer uma declaração pública esclarecendo que "a Casa Real nunca concordou em vetar ou aprovar, nunca pediu para saber que tópicos serão incluídos e nunca expressaria uma visão sobre o rigor do programa" - afastando assim a ideia de que a série era aprovada pela rainha, atualmente com 93 anos, e que, portanto, tudo o que ali se contava correspondia à realidade.
Se já havia alguma polémica relativamente às conturbadas relações da rainha com o marido e com a irmã, imagine-se o desconforto na Casa Real quando um dos episódios da terceira temporada dá a entender que Isabel II terá sido infiel ao marido, o duque de Edimburgo, tendo uma relação com o responsável do estábulo dos seus cavalos de corridas, Iord Porchester, que tratava carinhosamente por Porchey. Num artigo publicado há dias no The Times, Dickie Arbiter, ex-assessor de imprensa da rainha, afirma: "Tudo isto me parece de muito mau gosto e totalmente infundado. A rainha seria a última pessoa do mundo a considerar olhar para outro homem que não fosse o seu marido." Segundo Arbiter, este é um boato que circula há décadas mas que "não tem qualquer fundamento". E conclui: "The Crown é uma ficção. Ninguém conhece as conversas particulares que os membros da família real têm, mas, é claro, as pessoas contam sempre a história que desejam para torná-la mais sensacionalista."
A terceira temporada termina em 1976. Mas ainda há muita história por contar na quarta temporada, que deverá ter estreia em 2020. Em 1977, celebra-se o Jubileu da Rainha. Margaret Thatcher, que era líder do Partido Conservador desde 75, será eleita primeira-ministra em 1979 (e tudo indica que o papel pertence a Gillian Anderson). Em 1981, Carlos começa a namorar com uma jovem desconhecida do grande público, Diana (que será interpretada por Emma Corrin). E se se perde o encanto da reconstituição histórica, há todo um manancial de escândalos e divórcios a explorar até aos dias de hoje. Resta saber até onde os criadores de The Crown estão disposto a ir.