"Tenho a ideia de que certos homens estão com medo"
Foram imagens que marcaram o Festival de Cannes: a ação de protesto de um grupo de cineastas e atrizes, todas mulheres. Foi talvez o momento iconográfico do festival. Marion Cotillard, como não poderia deixar de ser, desfilou orgulhosa em prol da igualdade entre sexos.
A atriz francesa é uma feminista determinada, conforme contou ao DN numa conversa por ocasião da promoção de Gueule d'Ange, de Vanessa Filho, um melodrama sobre maternidade que foi exibido no Un Certain Regard.
Subiu em Cannes a escadaria vermelha junto a um grupo de mulheres ligadas ao cinema em torno do movimento #MeToo. Estar ao lado de todas aquelas mulheres numa ação de sensibilização pela igualdade feminina foi algo que a deixou arrepiada? Como foi aquele momento?
Foi muito especial. Serviu para enviar uma mensagem muito forte. Serve para mostrar ao mundo que nós temos uma voz e que podemos falar alto na tentativa de consciencialização para a necessidade da igualdade. Diria que foi um bom passo, um passo necessário, pelo menos aqui em Cannes, quanto mais não seja para mostrar a força desta revolução que começou há alguns meses.
Fala em força, mas essa luta vai demorar tempo a ter resultados?
Creio que vai mudar o mundo e permitir que coisas que pareciam aceitáveis se tornem inaceitáveis. Certos comportamentos vão mesmo mudar. É muito importante darmos a nossa voz a esta luta, outras mulheres em outros campos profissionais não têm a possibilidade de erguer a voz. Isto também é para elas...Nós todas sentimos que a nossa voz é realmente ouvida e que temos de a usar! Queremos ser exemplo para todas as mulheres que são vítimas de assédio, sobretudo para mulheres que trabalham em hotéis, restaurantes ou outros postos, mulheres que não podem perder o seu emprego pois têm de sustentar os filhos!
Mas vê mudanças no dia-a-dia, coisas praticas?
De alguma forma, sim. Tenho a ideia de que certos homens estão com medo...Ouvem muito a teoria de que agora tudo passa por nós. Certos homens estão aborrecidos com toda esta discussão. Temos pena...Este passo em frente, temo, é deveras necessário! Num mundo perfeito, com a igualdade, vamos ser capazes de conciliar homens e mulheres, o masculino e o feminino. A subordinação das mulheres não faz sentido nenhum, tem de parar! É absurdo hoje uma mulher ser tratada com inferioridade. Parece-me sem sentido como para o mesmo trabalho uma mulher receber menos do que um homem...Não me entra na cabeça e acho que é uma vergonha para a raça humana que ainda estejamos a lutar por isso.
Como olha para o poder que tem?
Todas as mulheres têm poder. O meu poder é um pouco maior porque o posso partilhar e não tem a ver com sucesso. Os atores têm a sorte e a chance de terem muitas luzes sobre si e as pessoas acabam por nos ouvir. Esta luta ganha um poder maior quando o mundo escuta as palavras de mulheres como Agnés Varda ou a Cate Blanchett. Pode inspirar mulheres que nos seus empregos não têm coragem para, por vezes, dizer não. Esta energia incrível que passamos pode dar força para outras mulheres dizerem basta! Antes da denúncia do caso Weinstein havia muita gente numa terrível situação de fraqueza. A coragem é aquilo que temos de mais importante, não acha? Hoje temos muitas mulheres já com um pouco de mais de força para se defenderem e mudarem a ordem do jogo.
Não sente que no meio do cinema o sexismo foi sempre algo instituído?
Sim, sobretudo na maneira como a figura da atriz era vista...As atrizes sofrem mais pois estão no mundo em que acabam por ter de falar delas próprias, por se "venderem" também como pessoas. Para alguém escolher uma atriz não basta o teste de câmara, é preciso muito mais. Por muito que sejas a melhor atriz do mundo isso não te garante que o realizador te escolha...E esse fator humano, muitas vezes, faz com que certas pessoas abusem. Há uma grande percentagem de atrizes que pensam que se cederem em certos aspetos podem ter mais hipóteses de arranjar trabalho. Enfim, o velho cliché.
Neste filme, Gueule d'Ange, de Vanessa Filho, faz de mãe irresponsável e ausente, e em grande parte das cenas está a interpretar uma mulher sob o forte efeito do álcool. Qual o seu método para fingir que esta alcoolizada?
O mais importante é nunca bebermos álcool. Essa não é uma opção já que temos sempre de entrar na personagem e estarmos sóbrios para representar. Digo-lhe que passa por perdemos o nosso equilíbrio, mas nem tenho certezas, sobretudo porque é muito complicado encontrar a autenticidade desse estado. Tenho alguma experiência com álcool, embora nunca tenha sido beberrona ou alcoólica. Confesso que já algumas vezes na minha vida fiquei bêbada. Mas o que me ajudou mais foi ter observado muita gente bêbada de perto. Aliás, quando estou sob o efeito do álcool deixo de conseguir observar, estou mesmo bêbada, não consigo colocar-me naquele lugar de auto observação. Qualquer ator faz muito bem esse processo de observação e de roubar pequenas coisas.
Mas tem um valor simbólico nesta altura do campeonato ter estado em Cannes com uma primeira obra de uma mulher?
Não, fiz Gueule d'Ange apenas porque fiquei apaixonada pelo argumento e pela personagem da mãe. Senti que estava a fazer algo verdadeiramente inédito. Também me apaixonei pela Vanessa Filho, uma artista espantosa, com uma poesia linda. É incrível que ela logo nesta sua estreia tenha sido selecionada para Cannes! Juro que não fiz este filme só porque era realizado por uma mulher.
Foi um desafio interpretar esta mãe "má"? Sei que nunca julga as suas personagens...
Sim, nunca. Esta é uma mulher que sofreu falta de amor na sua infância, ao contrário de mim que tive a sorte de ter os meus pais que sempre me deram amor.