Leia o livro, veja o filme. Costuma ser este o mantra dos livreiros. Mas e se fosse ao contrário? A edição em Portugal (pela Porto Editora) daquele que tem sido apelidado de "romance de estreia de Quentin Tarantino" traz ao panorama a inversão da lógica comum. Quer isto dizer que, na verdade, convém ter visto primeiro o filme para se saborear o que Era Uma Vez em Hollywood tem para oferecer ao leitor, ou mais propriamente leitor-espectador. Até porque essa lógica passa pela própria natureza da conceção do livro. Ao assinar um contrato com a HarperCollins para lançar uma "novelização" do seu filme, Tarantino recuperou o espírito dos "primeiros livros adultos" com que cresceu na década de 1970, publicações baratas escritas a partir de rascunhos de guiões que constituíram um subgénero em si - a chamada novela de cinema -, praticamente marginalizado e, como tal, acarinhado pelo cineasta devoto das criações fora do radar..Foi deste gosto muito pessoal que nasceu então o seu "romance de estreia", um objeto que tem mais que ver com a frenética cinefilia do autor do que com a estrutura convencional de um romance. Importa, por isso, reforçar que Era Uma Vez em Hollywood não responde a qualquer princípio de fidelidade ao filme, contendo mesmo várias supostas sequências que não foram filmadas. E, nessa medida, surge como uma companion piece, de construção livre e por vezes aleatória, ainda que o seu valor individual não esteja em causa..Desçamos ao concreto. Se o leitor bem se recorda, Era Uma Vez em... Hollywood (2019), o filme, capta o estertor da era dourada de Hollywood, na Los Angeles de 1969, a partir das mágoas de um ator, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), e do amigo Cliff Booth (Brad Pitt), que trabalhou como seu duplo em filmes e agora faz as vezes de motorista/assistente. Duas personagens fora de prazo numa indústria cinematográfica em mudança, cujos destinos acabam por tocar de leve, e miraculosamente, o do casal Sharon Tate e Roman Polanski, vizinhos de Rick Dalton - a saber, na fantasia de Tarantino, a "família" de Charles Manson tem o azar de se cruzar primeiro com Rick e Cliff (numa das sequências finais antológicas do cinema moderno), anulando-se a tragédia real do assassinato de Tate, na madrugada de 9 de agosto de 1969..O que distingue desde logo o livro é que, no seu interior, a "descrição cultural" destas personagens funciona como o verdadeiro motor da leitura, para além do tracejado narrativo. Veja-se, por exemplo, como Tarantino não tem problemas em dedicar sete páginas inteiras (de 340) ao perfil cinéfilo de Cliff Booth, o duplo que, depois da sua experiência na Segunda Guerra Mundial, passou a achar o cinema americano demasiado imaturo, voltando-se para os filmes estrangeiros, com uma admiração particular por alguns de Kurosawa do tempo de Toshiro Mifune. Ele tem, contudo, as suas embirrações, de Bergman a Truffaut, passando pelo casting de Giulietta Masina nos filmes do marido, Fellini... "Cliff não tinha conhecimentos suficientes para escrever críticas para a Films in Review, mas sabia o suficiente para saber que Hiroshima Mon Amour era uma merda. Sabia o suficiente para saber que Antonioni era uma fraude" (tradução de Miguel Marques da Silva). Mas afinal, estas são picardias de Cliff ou de Tarantino? Sem dúvida que o prazer e diversão do romance é criar um espelho ambíguo entre as considerações das personagens e a voz do autor/realizador..Melhor dizendo, cada personagem é um pretexto (ainda que com personalidade) para mergulhar na sua própria visão e conhecimentos da cultura pop (que inclui também a televisão, a rádio e a música), com uma tendência pródiga para dissertar sobre tudo o que venha à rede e bata certo com a linha do tempo histórico. Há pequenas anedotas, como a referência ao tiro que o produtor Walter Wanger deu na virilha de Jennings Lang, ao desconfiar que este teria um caso com a sua mulher, a atriz Joan Bennett, há seis páginas à volta da estreia revolucionária do filme "pornográfico" sueco Sou Curiosa (1967), de Vilgot Sjöman, e duas de análise aos elementos de suspense de Rosemary"s Baby (1968), de Polanski, entre outras delícias de um aficionado capaz de moldar a ficção dentro da moldura de um tempo e lugar verídicos sem perder o gozo do comentário traquina..No fundo, a prosa de Tarantino em Era Uma Vez em Hollywood é aquela que se poderia esperar de um apreciador de pulp fiction com afeição pela veia crítica de uma Pauline Kael. Do filme em si, ficaram de fora muitas sequências e surgem outras que oferecem uma recontextualização das personagens, fazendo faísca na cabeça do leitor-espectador. Uma das surpresas é o modo como o autor despacha o que tinha sido o clímax do filme num parágrafo em modo de flashback ainda perto do início do romance. Com esse gesto perverso, ele está a dizer-nos que não é a história que interessa, mas sim todas as histórias que alimentam um amor por Hollywood, apesar de todos os seus defeitos. Tal como o filme, este é um romance para se estar e para se devorar até às últimas palavras. Que por acaso são: "boca aberta"..dnot@dn.pt