Tanzânia: um país livre do vírus ou uma nação às escuras?

O excêntrico presidente foi sempre contra o distanciamento social e o uso de máscaras. Chegou a mandar testar um mamão, uma codorniz e uma cabra para provar que os testes não funcionavam. Em junho, declarou o país livre de covid-19, mas não há dados da infeção desde maio.
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O presidente da Tanzânia, John Magufuli, é conhecido como um líder excêntrico, crítico da forma de governação ocidental e considerado um dos raros chefes de Estado a combater eficazmente a corrupção num país africano. Com a pandemia ganhou um novo atributo: é o homem que declarou o país livre do novo coronavírus, um anúncio feito em junho. Será mesmo assim?

Não é que o país da África Oriental não pudesse estar livre da infeção, mas a forma pouco convencional como o chefe de Estado lidou com a pandemia de covid-19 desde o início - e que levou a OMS África a dar uma reprimenda à Tanzânia pela forma "lenta" como estava a agir para conter a disseminação do vírus - tem deixado muitas dúvidas sobre se a declaração de Magufuli é verdadeira.

O presidente não defendeu o confinamento, antes pelo contrário: instou as pessoas para que continuassem a frequentar igrejas e mesquitas. "O coronavírus, que é um demónio, não pode sobreviver no corpo de Cristo. Ficará instantaneamente queimado", afirmou Magufuli, ele próprio um cristão devoto, recorda a BBC, que dedica um longo artigo ao percurso do tanzaniano.

Quando fez a polémica declaração o calendário marcava o dia 22 de março. Dias antes - a 16 - o país registava a primeira infeção.

Também se manifestou contra o distanciamento social e o uso de máscaras, e questionou a eficácia do teste à doença. Chegou a pedir para testarem animais e frutas para provar que os testes não funcionavam e revelou que um mamão, uma codorniz e uma cabra tinham testado positivo.

Anunciou que não iria permitir o fecho da economia e criticou os países vizinhos por estarem a fazê-lo.

Mesmo com um primeiro caso detetado no país, John Magufuli apenas decretou o encerramento de escolas e instituições de ensino e demorou um mês a suspender as atividades desportivas e a decretar o fecho das fronteiras.

É certo que o limite de passageiros nos transportes públicos foi reduzido, bem como o número de clientes em bares e restaurantes, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) para África, através do seu diretor, Matshidiso Moeti, não considerou as medidas suficientes.

"Na Tanzânia, observamos que o distanciamento físico, incluindo a proibição de ajuntamentos, demorou algum tempo para acontecer e acreditamos que esses fatores possam ter levado a um rápido aumento de casos no país", disse Moeti, em abril.

Os mercados e outros locais de trabalho continuaram abertos como sempre, bem como as igrejas e as mesquitas.

"Tivemos uma série de doenças virais, incluindo Sida e sarampo. A nossa economia deve vir em primeiro lugar. A vida tem de continuar", justificou Magufuli.

"Os países de África virão aqui para comprar comida nos próximos anos ... vão sofrer com a paragem da economia", vaticinou.

No início de junho, Magufuli declarou o país "livre do coronavírus", e o Ministério da Saúde também anunciou o encerramento dos centros de tratamento e isolamento de infetados.

Mas a Tanzânia deixou de publicar os números de casos de coronavírus em maio, o que torna difícil comprovar a ausência de novas infeções. O país tinha 509 casos registados, 21 mortes e 183 recuperados quando publicou a sua contagem final.

"O país funciona na escuridão dos dados ", considerou recentemente o analista tanzaniano Aidan Eyakuze.

Os relatos são de que os hospitais do país estão a funcionar como antes da pandemia e nem os média independentes nem as ONGs têm apresentado dados contrários. Em julho, médicos tanzanianos disseram à BBC que os hospitais não estavam sobrecarregados.

A forma como Magufuli está a lidar com a pandemia de covid-19 é o retrato fiel da sua forma de governar - concorre agora a um segundo mandato.

É inspirado pelo primeiro presidente da Tanzânia, Mwalimu Julius Nyerere, que sempre foi "ferozmente independente", recorda a BBC.

O atual chefe de Estado refuta ser influenciado pelas ações de outros líderes regionais e internacionais, em prol dessa independência.

"O nosso pai fundador não era alguém que recebesse instruções sobre o que fazer ... Aqueles que elaboram esse tipo de regras [de confinamento] estão acostumados a cumprir diretrizes que o nosso pai fundador recusou ", disse Magufuli.

John Magufuli foi declarado Presidente da Tanzânia no dia do seu 56º aniversário, em outubro de 2015, e parecia ser tudo aquilo de que o país precisava: eficiente e incorruptível.

No primeiro dia como chefe de Estado, declarou-se fortemente contra o absenteísmo crónico do país nos serviços públicos. Em visita oficial aos escritórios do Ministério das Finanças perguntou onde estavam os funcionários.

Despediu milhares dos chamados "trabalhadores fantasmas" da folha de pagamento pública e demitiu aqueles que foram considerados corruptos ou que tinham fraco desempenho. Fê-lo muitas vezes perante as câmaras de televisão.

Cancelou as comemorações do Dia da Independência pela primeira vez em 54 anos, para poupar nos gastos, e direcionou a verba para a limpeza das ruas - recolheu o lixo com as próprias mãos do exterior da residência oficial.

Foi um sucesso. Ao fim do primeiro ano de presidência, nasceu a hashtag no Twitter: #WhatWouldMagufuliDo (o que vai fazer Magufuli). Em 2017, um professor queniano pediu a "Magufulicação" de África durante um discurso na Universidade de Dar es Salaam.

Mas também anunciou que a TV do estado iria deixar de transmitir as sessões parlamentares ao vivo, como medida de corte de custos. A oposição considerou a medida um ato de censura e planeou manifestações contra a decisão, mas o governo proibiu-as.

Em 2017, uma canção do popular rapper tanzaniano Nay wa Mitego a criticar a presidência, levou a que o artista fosse detido. Magufuli ordenou a libertação um dia depois, mas sugeriu que a música fosse reformulada para incluir versos sobre outros problemas na sociedade, como a fraude nos impostos.

Magufuli aprovou uma lei que impede as raparigas que engravidam de frequentarem ou regressarem à escola após o nascimento da criança e sob a sua presidência as estatísticas oficiais deixaram de ser públicas.

Os críticos são, no entanto, unânimes: Magufuli contribuiu para o desenvolvimento da Tanzânia nos últimos anos, investindo em vários grandes projetos de infraestruturas e aumentou a produção de eletricidade existindo cada vez menos racionamento de energia no país.

Também deu nova vida à companhia aérea estatal Air Tanzania que tinha apenas um avião - tem agora seis novos aviões e integrou outros que estavam em manutenção.

Introduziu ainda a educação gratuita para todos os tanzanianos até ao quarto ano.

Nasceu e cresceu numa pequena vila do distrito de Chato, ao longo da margem do Lago Vitória, e diz que foi a sua origem modesta que o inspirou a trabalhar para o povo.

"A nossa casa era de palha e, como muitos meninos, eu também era pastor, além de vender leite e peixe para sustentar a minha família", revelou durante a campanha eleitoral de 2015.

"Eu sei o que significa ser pobre. Vou esforçar-me para ajudar a melhorar o bem-estar das pessoas", prometeu.

Foi professor de Matemática e Química e trabalhou como químico industrial antes de renunciar em 1995 para concorrer à cadeira parlamentar no seu distrito - Chato. Subiu na hierarquia e foi nomeado para vice-ministro das Obras Públicas.

Quando se candidatou, em 2015, as eleições presidenciais foram das mais aguerridas da história do país - Magufuli venceu com 58% dos votos.

Agora, um segundo mandato parece mais difícil. É acusado de oprimir a oposição e de restringir a liberdade de imprensa, além de dificultar a vida às empresas estrangeiras,

O principal candidato da oposição nas próximas eleições é Tundu Lissu, do partido Chadema, que sobreviveu a uma tentativa de homicídio em 2017 e ficou quase três anos num hospital no exterior em tratamento e reabilitação. Ninguém foi acusado do crime.

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