No mais recente capítulo da disputa entre a pequena Lituânia e a gigante China, Taiwan encomendou milhares de garrafas de rum lituano, que iriam ficar bloqueadas por Pequim, enquanto em Vilnius o presidente deu sinais, senão de cedência, pelo menos de desacordo com a política externa do governo. Ainda assim, tal como a Lituânia teve um papel pioneiro na desagregação da União Soviética há quem veja um papel de charneira numa mudança de relacionamento dos países ocidentais com a China e com Taiwan, e que não passa pela questão do reconhecimento diplomático..A companhia estatal de tabacos e bebidas espirituosas de Taiwan, TTL, informou ter comprado 20 400 garrafas de rum escuro lituano que tinham sido expedidas para a China mas que iriam ficar bloqueadas em resultado da batalha diplomática entre Pequim e Vilnius. A remessa deverá chegar à ilha Formosa no final do mês. "A TTL posicionou-se na altura certa, comprou o rum e trouxe-o para Taiwan. A Lituânia apoia-nos e nós apoiamos a Lituânia. A TTL convida a que se faça um brinde a isso." Prova de que o brinde não é apenas simbólico, o Conselho de Desenvolvimento Nacional de Taiwan publicou no Facebook receitas de cocktails com a bebida..A iniciativa das autoridades de Taipé vem no seguimento de ter aberto em novembro um escritório de representação (uma embaixada de facto) com o nome de Taiwan quando a regra tem sido usar o nome da capital, como acontece em Lisboa. Em resposta, a China, que não esconde a fúria quando há sinais de apoio ou de legitimação internacional a Taiwan, depreciou o nível da relação diplomática com a Lituânia, tendo deixado de emitir vistos. Em consequência, a encarregada de negócios lituana deixou Pequim..O tigre amarrado há 50 anos com cordel de palha.Outra consequência, esta não admitida de forma oficial: o regime comunista bloqueou as exportações da Lituânia. Várias empresas lituanas começaram a queixar-se de que a China não desalfandegava os seus produtos. O comissário europeu Valdis Dombrovskis não só confirmou a medida retaliatória chinesa mas também disse que outros países membros estavam a ser afetados ao exportar para a China mercadorias com partes produzidas no estado báltico. "A UE está pronta a enfrentar todo o tipo de pressões políticas e medidas coercivas aplicadas contra qualquer estado-membro", prometeu o dirigente letão, embora tenha dito que iria tentar resolver o litígio através dos canais políticos e diplomáticos..O ressentimento entre chineses e lituanos terá nascido em 2019. Durante os protestos da população de Hong Kong contra a lei que, na prática, Pequim retirou a autonomia à ex-colónia britânica, Vilnius foi palco de uma manifestação de solidariedade. A história ficaria por aí, não fosse o caso de diplomatas chineses terem iniciado uma briga durante a concentração pacífica. Mais tarde foi criado o Fórum de Taiwan. Um dos seus fundadores, o antigo deputado Gintaras Steponavicius resume o sentimento lituano: "Não estamos habituados a que nos digam como nos devemos comportar, nem sequer por uma superpotência", disse ao New York Times..Com o governo de coligação chegado ao poder há pouco mais de um ano, o caminho a seguir foi o do partido do ministro dos Negócios Estrangeiros, Gabrielius Landsbergis. O partido do neto de Vytautas Landsbergis, o homem que declarou a independência do país em relação à União Soviética, advoga não ceder em matéria de direitos humanos, incluindo a China. Uma vez no governo, o país saiu do grupo 17+1, uma iniciativa diplomática de Pequim junto dos países do antigo bloco de Leste, emitiu um aviso para os cidadãos se livrarem de telemóveis Xiaomi (por conterem um dispositivo de censura de pesquisa sobre centenas de palavras, ainda que alegadamente não funcione na Europa), liderou uma visita do grupo parlamentar dos países bálticos a Taipé e permitiu a abertura da referida representação diplomática em Vilnius sob o nome de Taiwan..Nem todos concordam com esta abordagem ousada, caso do ex-presidente Valdas Adamkus. Já o presidente Gitanas Nauseda disse na terça-feira que foi um erro a abertura do escritório com o nome que Pequim não aceita. "Agora temos de lidar com as consequências. E temos de sinalizar muito claramente à UE de que isto é um ataque.".A realidade é que após o acordo de princípio entre a China e a União Europeia sobre investimentos, anunciado no final de 2020, as relações azedaram. A opacidade sobre a origem do novo coronavírus, a contínua repressão em Hong Kong e a ameaça militar crescente em relação a Taiwan contribuíram para que vários países europeus se mostrassem menos preocupados em obedecer às diretivas de Pequim sobre a política de uma China e estreitassem relações..Em 2021 um número recorde de delegações visitou a ilha Formosa, e um ministro da diplomacia taiwanês foi pela primeira vez recebido em Bruxelas (ainda que não formalmente), além de ter liderado uma delegação que visitou a Lituânia, República Checa e Eslováquia.."Não cooperar com Taiwan é um erro, porque onde se pode encontrar um melhor conhecimento do regime chinês do que aqui?", disse em Taipé o francês Raphael Glucksmann, que chefiava a delegação de eurodeputados na primeira visita do género..A República Popular da China voltou a hastear a bandeira na Nicarágua no último dia de 2021, mais de três décadas depois de Violeta Chamorro ter reconhecido Taiwan. Sob sanções dos EUA e da União Europeia em resultado da deriva autoritária de Daniel Ortega, Manágua restabeleceu laços diplomáticos com Pequim durante uma visita à China do ministro das Finanças e de dois dos sete filhos do presidente e da vice-presidente, Rosario Murillo..Com esta troca, Taiwan passa a ser reconhecido como estado apenas por 14 países, e no continente americano conta somente com Paraguai e Honduras - sendo que a presidente eleita hondurenha, Xiomara Castro, prometeu também romper com Taipé..cesar.avo@dn.pt