"Szymborska foi uma das poucas escritoras no mundo que não queria o Nobel"

Professor de Teoria da Literatura na Universidade Jaguelónica, de Cracóvia, Michal Rusinek é também diretor da Fundação Wislawa Szymborska, que leva o nome da Prémio Nobel da Literatura de 1996. No ano em que se assinala o centenário da poeta polaca, o seu antigo secretário pessoal veio a Lisboa para uma palestra na Faculdade de Letras da Universidade de LIsboa.
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Vou começar por perguntar-lhe sobre o prémio de 1996. Para Wisława Szymborska e para a Polónia foi uma surpresa o Nobel para uma poeta então com 73 anos?
Não creio que tenha sido uma surpresa total porque havia há algum tempo boatos de que iria ganhar o Prémio Nobel. E ela tinha um pouco de medo de que a sua vida se tornasse completamente caótica, então estava, podemos dizer, meio preparada. Szymborska fugia de Cracóvia todos os outubros, para o caso de receber o telefonema. Mas um ano antes, o irlandês Seamus Heaney, também poeta, ganhou o Nobel. Então Szymborska ficou meio aliviada por pensar que afinal não receberia o Prémio Nobel. E então houve esta situação estranha, ganhou mesmo o Prémio Nobel, e foi uma revolução na vida dela. Mas o povo polaco estava preparado porque há muito se dizia que podia acontecer. Na verdade, com o Nobel da Literatura nunca se sabe. É muito mais fácil prever que alguém vai ganhar o Nobel se se tratar de um químico. Porque há um número limitado de pessoas que fazem algo realmente notável de investigação científica e uma delas acabará por receber o Prémio Nobel. Com os escritores é completamente diferente. Então, quando estive com ela em Estocolmo - fui um convidado de última hora, não estava na primeira lista, é uma longa história, não importa agora - sentei-me junto com o grupo dos químicos e todos disseram: bem, o Prémio Nobel da Literatura é o verdadeiro Prémio Nobel porque nunca se sabe, é como uma roleta. Então para ganhar é preciso talento e também ter muita sorte. Mas para ela foi muito difícil porque na verdade ela não queria receber o Nobel. Ela foi provavelmente uma das poucas escritoras no mundo que não o queria.

Por ser tímida?
Não, ela simplesmente não se importava com prémios. O que ela queria fazer era continuar a escrever. E a escrita dela, o modo dela de escrever era muito específico. Ela gostava de andar pelo mundo e olhar para o mundo e depois tirar conclusões sobre o mundo. E é bastante difícil fazê-lo se a pessoa se tornar uma celebridade da noite para o dia, pois então olha para o mundo, mas o mundo também a olha de volta. A pessoa deixa de ser anónima. E eu acho que esse foi um dos maiores problemas, não a timidez.

É possível dizer que os temas da poesia de Szymborska eram universais mais do que ligados à Polónia?
Esta é uma boa pergunta porque ela não é, de certo modo, uma escritora polaca. É difícil dizer. Ela sempre disse que era uma patriota da língua, que poderia viver no mundo todo, não importa onde, mas precisava pensar, falar e ler em polaco. Mas a perspetiva que ela assumiu na sua poesia não era polaca, não era europeia, não era, sequer humana, por assim dizer. É por isso que os seus poemas são lidos agora de forma ecocrítica, o que até está bastante na moda, por assim dizer. Ela pensava que nós, os humanos, não somos as criaturas mais importantes deste mundo, o que é até muito anticatólico.

Há então quem descubra uma espécie de modernidade na poesia de Szymborska hoje em dia?
Sim, modernidade ou mesmo pós-modernidade. Portanto, está bastante atualizada, especialmente na Europa Ocidental. É assim que ela é lida. Existe algo a que chamamos escola polaca de poesia com Czeslaw Milosz, com Zbigniew Herbert, com Tadeusz Rozewicz. E ela sempre esteve lá, mas meio à margem, porque não lidou com as grandes questões históricas. Ela lidou com alguns pequenos problemas. Por assim dizer. Mas também, talvez, se não saiba qual problema é pequeno e qual não o é, na verdade. Essa perspectiva dela era irónica, é claro, mas também era mais ampla de certa forma. Lembro-me de quando estive em Nova Iorque, há uns dez anos, e houve o aniversário do 11 de Setembro. Não fui ao Ground Zero, mas acabei por ligar a televisão. E foi muito estranho, porque houve três oradores principais, como o presidente e o governador e talvez o mayor e todos citaram poesia polaca. Foram Szymborska, Milosz e Adam Zagajewski, que escreveu um poema sobre o mundo mutilado, o que foi muito importante para eles. E um amigo meu que era professor na Universidade de Columbia perguntou aos oradores porque escolheram poesia polaca. E todos disseram o mesmo, embora não tivessem combinado entre si. Todos disseram que a história polaca era tão dramática, que pensaram que a sua poesia seria adequada para esta ocasião deste aniversário do 11 de Setembro.

Falando sobre história, como foi a relação de Szymborska com o regime comunista pós-Segunda Guerra Mundial e com o movimento Solidariedade que o derrubou?
Num dado momento Szymborska fez parte do sistema, mas depois tornou-se crítica. Ela nasceu em 1923 e cresceu numa família nacionalista, muito de direita. O seu pai era nacionalista, embora isso significasse algo diferente antes da Segunda Guerra Mundial do que significa agora. Ele morreu quando ela tinha 12 ou 13 anos. Era provavelmente a pessoa mais importante na vida dela. Ensinou-a a ler, e também a ensinou a escrever, ainda muito jovem, na verdade. E acho que ela sempre o culpou por morrer cedo. Há um momento importante sobre o qual devo falar. Foi quando, depois da guerra, ela decidiu publicar o primeiro poema. Foi ao jornal Dziennik Polski, de Cracóvia, e publicaram o poema, e ela ficou muito feliz. Voltou para casa e a mãe não gostou muito. Não porque fosse político. Não era. Era sobre a guerra. Chamava-se "À procura de uma palavra". Mas a palavra para nomear os terrores, as coisas terríveis que aconteceram durante a guerra. Também a irmã gozou com ela, e o primo também. Então Szymborska decidiu mudar-se para um lugar muito especial, que se chamava Casa dos Escritores. Foi ideia do regime comunista, logo após a guerra - na verdade, foi ainda antes do regime se impor - reunir todos os escritores numa casa em Cracóvia. E na verdade os escritores mais importantes da Polónia viveram neste edifício durante 50 anos. É engraçado, posso fazer uma revisão da história recente da literatura polaca, apenas lendo a lista com os nomes das pessoas que ali viviam. Esses escritores eram principalmente comunistas e foi nesse momento que ela se tornou um deles. E começou a pensar como eles. Mas também queria fazer algo contra o pai. Penso eu. Nunca falei disto com ela. E ela também nunca falou sobre isso publicamente. Portanto, durante muitos anos, Szymborska foi uma figura comunista. Foram então publicados os seus dois primeiros livros de poemas. Houve um outro, o verdadeiro primeiro livro de poemas, que não foi publicado, porque já era tarde demais. Ela escreveu um livro de poemas em 1948. Mas em 1949, foi declarado o realismo social na Polónia. Portanto, era tarde demais para publicar o tal livro. E ela decidiu não fazê-lo. Ou foi decidido. Não sabemos. E os seguintes dois livros foram de realismo social. Alguns críticos dizem que a sua verdadeira estreia foi o livro Chamado por Yeti, que não era nem um pouco realismo social. E ela desenvolveu a sua própria voz que manteve até o fim, na verdade. Portanto, podemos dizer que ela estava envolvida no sistema, estava envolvida na política, mas no início dos anos 60 decidiu sair do partido. Não queria mais ser política.

Mas não era uma dissidente?
Não verdadeiramente. Mas assinou uma das cartas de protesto contra alterações na Constituição polaca. Carta assinada por muitos intelectuais e escritores. E depois disso a polícia secreta polaca decidiu dificultar-lhe a vida, não lhe dando passaporte. Mas para ela foi uma bênção, porque odiava viajar. Então não se importou, na verdade. Passou a ter uma bela desculpa quando era convidada para algum festival de poesia: "lamento muito, não consegui o meu passaporte". Durante os tempos do Solidariedade, ela estava, claro, mais próxima dos dissidentes, por assim dizer, mas nunca esteve politicamente engajada. Ela publicou um ou dois poemas com um pseudónimo na Kultura Paryska, que era uma revista literária em polaco, mas publicada na França. Mas não estava muito envolvida. Talvez se tenha envolvido um pouco mais depois do Prémio Nobel, quando a direita chegou ao poder com o partido PiS, a chamada primeira era PiS, como dizemos, em 2005, e ela estava muito zangada porque dizia "ganhámos algo como a democracia, e agora estão a tentar destruí-la". Então assinou cartas de protesto nessa altura.

É possível ver o Nobel de Szymborska como uma espécie de prémio político também para a nova Polónia democrática pós-1989?
Não creio. Houve antes, recordo, um problema com Milosz. Quando Milosz recebeu o Prémio Nobel em 1980, era o momento da fundação do Solidariedade, e ele vivia no exílio há décadas. E quando foi a Estocolmo, para a cerimónia, houve uma conferência de imprensa, e todas as perguntas foram políticas. Milosz ficou furioso. E disse: "por que deveria responder a essa pergunta? Não estou aqui por motivos políticos, estou aqui pela poesia". Claro, nunca saberemos por que decidiram desta ou daquela maneira, mas no caso de Szymborska não ligaria o Prémio Nobel à nova Polónia.

Sobre a sua relação pessoal com Szymborska. Foi seu secretário pessoal, hoje é diretor da Fundação Wislawa Szymborska. Como foi o primeiro contacto?
Conheci-a meio ano antes de ela receber o Prémio Nobel. Era amiga de um professor meu, e nós éramos estudantes do último ano de Estudos Polacos. Tínhamos uma espécie de sociedade das pessoas que adoravam o professor, e convidámos Szymborska para ser um dos nossos membros. E organizámos uma espécie de reunião, e a grande poeta veio, e estávamos todos apaixonados por ela, absolutamente. Passados uns meses ela ganhou o Prémio Nobel da Literatura, e então escrevi a dar os parabéns, pois eu era o chefe desta sociedade. Duas semanas depois, tornei-me secretário dela. Era o momento em que eu estava a terminar o curso e tentava encontrar maneira de conseguir algum trabalho. De início foi apenas uma oportunidade por três meses, porque Szymborska disse-me que queria alguém para a ajudar até a cerimónia de entrega do Nobel em dezembro. No final, trabalhámos 15 anos juntos.

Já são cinco os escritores polacos distinguidos com o Prémio Nobel da Literatura, o mais recente deles em 2018, Olga Tokarczuk. É uma expressão de quão forte é a cultura do país, quão importante é a língua para a identidade de um país que durante mais de um século até foi apagado do mapa europeu, mas sempre sobreviveu como nação? A língua e a literatura são, a par do catolicismo, partes essenciais da identidade polaca?
Penso que sim. É muito forte o nosso apego à língua. A língua polaca é bastante diferente de muitas outras línguas, porque na verdade é a mesma em toda a Polónia. Quer dizer, existem alguns dialetos, mas é mais ou menos a mesma coisa. E é isso que nos mantém juntos. Não sei se os Prémios Nobel refletem a importância da língua. Talvez sim. Nunca pensei sobre isso. E não creio que a literatura polaca seja a melhor literatura do mundo. Mas pode ser muito interessante. E tenho certeza de que Szymborska é um dos poetas mais interessantes do século XX e do século XXI. Não sou objetivo, claro. Mas acho que ela não é muito polaca, por assim dizer. Ela não está tão mergulhada na história como acabei de dizer sobre Herbert e outros poetas. Ela é como uma voz diferente de certa forma. Mas está tudo expresso em polaco. Então o polaco é bom para expressar esse ponto de vista ou expressar esse tipo de ideia que ela tinha. Ela está traduzida provavelmente para a maioria dos principais idiomas do mundo. Cerca de 50 idiomas, pelo menos. E em alguns países, como a Suécia ou a Itália, ela tornou-se muito, muito popular. As pessoas leem hoje a sua poesia. As pessoas conhecem a sua poesia. As pessoas escolhem a sua poesia para os funerais dos amigos e familiares. Ela surge também nos livros escolares. E há poemas que se tornaram canções. Deve haver algo de muito especial nisso, é claro, na língua dela, que também é a língua polaca.

Szymborska, que morreu em 2012, ainda é popular na Polónia?
Acho que sim. Claro, menos do que ela merece. Ser poeta provavelmente é sempre difícil de ser popular entre os leitores. Mas este ano ela tornou-se muito popular, graças às celebrações do centenário. E isso é graças também ao que nós, como Fundação, fizemos. O Senado, que não é PiS, anunciou que este é o Ano de Szymborska. E organizámos muitas coisas. E publicamos também uma edição de poemas reunidos em um livro. E é um best-seller. Mais de 50 mil exemplares, que são para a Polónia, para poesia, números incríveis.

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