"Surfar ao lado de Fanning ou Slater não me intimida"
O dia 20 de julho de 2017 ficou para a história. E o culpado foi Frederico "Kikas" Morais, que nesse dia, aos 25 anos, se tornou o primeiro português a chegar a uma final mundial de surf, depois de derrotar o antigo campeão do mundo Gabriel Medina e o atual detentor do título, John John Florence, e de ter conseguido a nota perfeita: um dez na última onda das meias-finais. Ainda assim, quando nos encontramos para este almoço, um mês depois de ter subido à categoria de herói nacional, nada nele indica outra coisa que não humildade. Kikas é um atleta calmo, com os objetivos bem traçados e uma serenidade que provavelmente é um trunfo na hora de competir lado a lado com os seus ídolos - de Tiago "Saca" Pires a Kelly Slater.
"Há um grande respeito mútuo nos circuitos", explica com a mesma naturalidade com que diz dar-se muito bem com "o Fanning" e nem sequer se sentir nervoso quando compete com as grandes figuras do surf mundial. "É a minha forma de encarar as coisas. É bom, mas não entro para um hit a pensar que vou com um Mick Fanning ou um Kelly Slater, qualquer um deles é mais um atleta, mais um surfista. Não me sinto intimidado por estar ao lado deles, antes vejo ali uma oportunidade para me superar, de me fazer ir mais longe." Até onde? "Para já, o que ambicionava fazer está a acontecer: queria qualificar-me para o World Tour [WT] e consegui, e o meu primeiro ano está a correr bem. Também abri a escola de surf com dois amigos... e para o ano hei de criar e seguir novos sonhos."
O ambiente não podia ter mais que ver com ele: estamos na esplanada do Lovit, na Casa da Guia, sobre o mar de Cascais onde Frederico cresceu. A combinar com a vista, escolhemos sushi para comer, mas, se eu posso dar-me ao luxo de uma imperial, Kikas opta pelo sumo do dia - que se justifica por um misto de gosto por coisas mais naturais e obrigação de atleta de se manter saudável. A sorte é que, além de extremamente focado e empenhado nos seus objetivos - aos 7 anos enviou uma carta a uma publicação de surf a apresentar-se e a avisar que ainda iriam falar muito dele -, as sua preferências não o atiram para fora de pé, à exceção do ocasional doce a que não consegue oferecer tanta resistência. O que é fundamental para quem passa mais tempo fora - na Austrália, onde vive pelos menos quatro meses por ano, no Taiti, na Califórnia ou onde o World Tour o levar - do que por cá.
Quando não está a fazer surf, a passar tempo com a namorada ou com a família, que lhe é absolutamente nuclear - é filho e sobrinho de duas referências nacionais do rugby, Nuno e Tomaz Morais -, é fácil encontrá-lo no ginásio ou mesmo a dar aulas a miúdos na Blue Room, a escola que abriu neste verão, em São João do Estoril. "É focada na iniciação, por isso ensinamo-los a pôr-se de pé na prancha, assistimos ao primeiro contacto com a água.. . é giro. Adoro ver os miúdos ali, a rirem-se, trocarmos high fives." Eles também gostam, claro. "Espero que sim...", ri-se.
Enquanto eu me entretenho a solo com as entradas e ele aplaca o calor com o sumo de ananás e maçã, conta-me que ele próprio nunca andou em escolas de surf. "Nessa altura não havia nada do que os miúdos têm hoje." Para ele, um miúdo de Cascais, o primeiro da sua família a experimentar surf, aos 5 anos, na prancha de bodyboard que um amigo lhe emprestou numas férias em Vilamoura, o maior professor foi o pai, que, reconhecendo-lhe o entusiasmo, começou a andar à procura de ondas pelo mundo, a aprender com os treinadores que arranjava para Frederico onde estava, a filmar as ondas que ele surfava e a aconselhá-lo. A família - pai, mãe e uma irmã dois anos mais nova - a reboque da maior paixão de Frederico Morais, então com uns 10 anos, a apoiá-lo, a incentivá-lo a empenhar-se e a chegar cada vez mais longe. Até porque os destinos não eram nada de se deitar fora: Maldivas, Havai, Taiti, Austrália...
Nessa altura, já competia, mas foi o pai o seu treinador até aos 17 anos, foi assim que Kikas foi crescendo. "Íamos muitas vezes a França, onde nessa altura a cultura do surf estava muito mais desenvolvida do que aqui (hoje estamos mais ou menos ao mesmo nível), em surfistas, infraestruturas, eventos. E ele ia aprendendo com o que via aos treinadores que trabalhavam comigo. Sempre que havia um bocadinho, íamos treinar." Não é que pensasse dedicar-se à competição - nem sabe bem, na verdade, como a coisa evoluiu nesse sentido, explica-o pela paixão que sentia pelo surf e basta. "Era o que eu gostava de fazer e as coisas desenrolaram-se de forma a poder fazer disto vida. Já nem me lembro o que pensava, talvez tivesse o sonho de competir e viajar - acho que toda a gente tem esse lado competitivo -, mas gostava mesmo era de surfar."
Todo o caminho foi conciliado com os estudos, que cumpriu até ao 12.º, com a ajuda da mãe, economista, "que fazia de explicadora" e a compreensão dos professores dos Salesianos do Estoril, que "facilitavam nas alturas em que estava em viagem". "Mas claro que tinha de ter as notas para passar. E não me arrependo nada desses anos, adorei estudar, fiz alguns dos meus maiores amigos na escola" - com quem ainda surfa ali por Cascais ou vai até ao Guincho sempre que está por cá. Mas tirar um curso, retomar os estudos, não é coisa que esteja nos seus planos para já. "A minha vida é o surf e mesmo um dia mais tarde posso sempre ir por outros caminhos mas relacionados com o surf. É o meu sonho que tenho de seguir."
Se quando era miúdo o surf ainda era quase um desporto marginal, agora que até já ascendeu à categoria de modalidade olímpica as coisas estão a mudar rapidamente. E Portugal tem capitalizado as vantagens de ter quase mil quilómetros de costa, sem contar com as ilhas, gerando surfistas nacionais como nunca, atraindo estrangeiros e mesmo celebridades como Garrett McNamara. "É incrível o que ele faz na Nazaré, tal como nós já temos surfistas incríveis lá: o João Macedo, o Hugo Vale, o António Silva..." A vocação de Kikas, porém, é outro tipo de onda. E a competição, claro.
Num desporto tipicamente caro - viagens, estadas, pranchas... - mas com tanto potencial, não devíamos estar a fazer uma aposta pública maior? "Eu não tenho razão de queixa e acho que se tivermos surfistas com potencial não faltam marcas interessadas." Ele próprio tem a Billabong, a Meo, a Monster Energy e a Ericeira Surf and Skate. "Quanto a apoios públicos...", encolhe os ombros, se é o futebol que apaixona, é natural que seja aí que se reúnem mais apoios. Ainda assim, diz-me enquanto vamos reconhecendo a frescura do peixe que já chegou à mesa - atum, salmão, peixe-manteiga, em sashimi e sushi - "os patrocínios funcionam bem. Um Tiago Pires, um Vasco Ribeiro, um Tomás Fernandes, todos tem autocolantes na prancha".
Além disso, sublinha, "a história do surf é muito recente aqui, e às vezes para desenvolver as coisas como queremos é preciso tempo". E Kikas gostava de estar na linha da frente dos atletas que para isso vão contribuindo. Por cá, reconhece que há muito talento: "Temos jovens surfistas ótimos, com imenso potencial, mas também têm de querer, de fazer sacrifícios, se não não chegam lá. E faltam talvez mais pessoas para guiar os jovens talentos com o know-how de um Tiago Pires - que conhece as ondas, os sítios, as pessoas -, que também o que tem o meu treinador."
Frederico Morais está há quase dez anos com o australiano - mas que vive em França - Richard Marsh. Mas talvez seja ele próprio a imprimir-se cada vez mais exigência. "Este primeiro ano no World Tour tem corrido bem, mas ainda faltam quatro etapas e só quando o ano acabar e eu estiver nos 22 primeiros do ranking é que está garantida a minha manutenção em 2018." Pode, porém, respirar mais agora, deslocar-se mais cedo para os locais de competição, ter tempo para conhecer a onda, experimentar pranchas. Neste momento em 14.º lugar no ranking e a disputar a etapa da Califórnia, para onde seguiu no início do mês, já que não precisa de continuara assegurar boas pontuações através do circuito de qualificação (todos os anos os dez primeiros dos Qualifying sobem ao grupo dos 32 que compõem o World Tour; descem os dez piores classificados). E até o campeonato estar terminado, "nada é garantido, tenho de estar atento e continuar a trabalhar".
Os pratos já se foram e o dia continua a aquecer, pelo que não prolongaremos muito o nosso almoço. Mesmo porque Kikas tem de seguir para o ginásio, para o exercício diário - a dobrar porque hoje não havia grandes ondas e por isso não houve surf. Mas ainda há tempo para um café - que ele dispensa, tal como a sobremesa - e para saber mais sobre o susto que apanhou em J-Bay, quando chegou às meias-finais. "Eu nem vi o tubarão", confessa. "Subi para a moto de água porque me avisaram e me puxaram, mas felizmente nem dei por isso." Com tanto tempo passado dentro de água, o que é estranho é que não tenha tido mais do que um verdadeiro susto, quando tinha 14 anos: "Bati no fundo, nas rochas, e levei 14 pontos nas costas e 14 na cabeça." E este do tubarão, claro. "A verdade é que quando estamos a competir nem pensamos nisso, mas às vezes a fazer free-surf ou a treinar, quando há menos gente na água ou o mar está mais castanho... Mas faz parte, estamos no território deles."
Já com o café a chegar ao fim, ainda tenho tempo para lhe perguntar, de todos os sítios do mundo para onde já viajou, qual foi o que mais o marcou. Diz que o Taiti, que conheceu aos 10 anos e aonde regressou neste ano, é o mais bonito onde esteve. Mas é na Austrália que se sente em casa, ainda que não escolhesse outro sítio para viver senão Portugal. "É onde faço toda a pré-época. Tenho um preparador físico cá e outro lá, passo metade do ano entre Newcastle e a Golden Coast, tenho imensos amigos e acho que têm um lifestyle parecido com o nosso, além do que adoram desporto."
E como é que se adapta esta vida de saltimbanco à vida social, à namorada, aos amigos? "Há tempo para tudo, quando se quer verdadeiramente não há obstáculos capazes de impedir-nos." Palavra de sobrinho do "Lobo" que escreveu Compromisso: Nunca Desistir. "Isso encaixa no meu lema de vida. Quando temos um background assim, tudo é mais fácil." Como facilita o facto de estar a viver um sonho. "Não sinto que estou a perder nada - mesmo que às vezes custe não estar em família num Natal, por exemplo -, porque estou a fazer o que mais gosto."
Antes de nos despedirmos, uma última pergunta: quantas pranchas tem Frederico "Kikas" Morais em casa? "Tenho talvez umas 30." Depois explica, para quem não entende que três dezenas de pranchas não é grande coisa, nesta vida de alta competição: "O mar é muito diferente conforme o sítio onde estamos a surfar, a praia, a altura do ano. Há momentos em que precisamos de pranchas mais grossas, noutros queremos as mais finas, mais longas ou curtas, com determinado detalhe no tail... São questões de uma especificidade tal que só o shaper entende realmente ao pormenor - nós damos o feedback e pedimos as adaptações necessárias, mas os artistas são os shapers."
Resta-me desejar boa sorte para as etapas que faltam até ao fim do ano. A ver se Kikas entra nos 26 como o primeiro português a repetir o mergulho na piscina dos grandes.
Lovit
Couvert
Combinado Tokyo
Philadelphia hot roll
Hot Lovit
Maguro de atum
Imperial
Sumo do dia
Café
Total: 61,65 euros