Para lá das várias histórias vividas ao lado de grandes nomes da música clássica, a sul-coreana Sumi Jo, vencedora de um Grammy em 1992, e que interpretou a música do filme Youth (2015), nomeado para os Óscares, tem uma lista de prémios que por si não cabe nestas linhas. Sumi Jo, a quem o conceituado maestro austríaco Herbert von Karajan apelidou de "voz do céu", conta como foi a sua infância dedicada a aprender artes e como é dura a vida de cantora lírica..Sempre com um sorriso na cara, a cantora clássica - que foge um pouco aos estereótipos de diva do canto - recebeu o DN na sua casa, em Lisboa. O nome da capital portuguesa está inscrito numa das paredes, embora explique que no início não sentiu qualquer ligação especial à cidade. Hoje, pelo contrário, adora Lisboa e quer retribuir esse "amor" à cidade e ao país em breve, embora sem revelar muito, para já, sobre o que pretende fazer..Porque escolheu Lisboa para viver? Adoro Portugal. Mas, há 10 anos, quando vim cantar no Teatro Nacional São Carlos, odiei. A cidade estava um verdadeiro estaleiro com obras em todo o lado, muito pó e barulho. Fiquei durante dois meses na cidade e todos os dias queria ir embora. Toda a gente parecia muito ocupada, mas ao mesmo tempo relaxada. Lembro-me que o teatro era horrivelmente frio, sem aquecimento. Um dia, durante os ensaios, um violinista recusou-se a tocar por causa do frio. Depois, mais tarde, numa viagem que fiz ao Brasil descobri como a língua portuguesa é fantástica. E depois descobri o fado, a comida. Foi um ponto de viragem dramático (risos). E quis ter uma casa em Portugal, então comprei uma no bairro da Lapa há cerca de nove anos. Mas tenho de confessar que só comecei a amar verdadeiramente a cidade há poucos anos. Sobretudo quando comecei a ter amigos portugueses e a tentar perceber a língua e a viajar muito dentro do país. Aliás, tenho falado bastante com os meus amigos sobre qual a melhor forma de retribuir a Portugal este meu amor, que embora recente é muito forte e profundo. E quando terminar as minhas turnés, gostaria de organizar algo aqui e dar retorno a este país..Citaçãocitacao"Tenho falado muito com os meus amigos sobre qual a melhor forma de retribuir a Portugal este meu amor, que embora recente, é muito forte e profundo.".E consegue perceber o que a tocou para dar essa "viragem"? À primeira impressão não tive qualquer ligação com a cidade. Mas quando comecei a estar cá sozinha, sobretudo na época da pandemia, e andei sozinha pelas ruas, comecei a ouvir a língua, a experimentar a comida portuguesa, a ver o rio, que muda todos os dias... tudo isso me fez lembrar a La Bohéme do [Franco] Zeffirelli. E isso fez-me perceber como é uma cidade que tem muito a ver comigo. Descobri a cidade por mim e foi uma descoberta muito emocional..Há algo em Portugal que a faça recordar a sua Coreia natal? Acho que os sul-coreanos são mais parecidos com os italianos, adoram dançar, cantar. Mas ao mesmo tempo também são muito emotivos, sentimentais, muito nostálgicos e hospitaleiros, tal como os portugueses. E quando oiço fado faz-me lembrar as noites e o pôr do sol no meu país..E como foi viver o dia-a-dia durante os confinamentos, sobretudo sem poder cantar nos palcos? Foi horrível, todos os meus concertos foram cancelados. A maior parte da minha atividade são concertos privados ou grandes concertos, porque já não faço óperas. Mas isso fez-me pensar que estava, de alguma forma, desligada do mundo. A minha profissão é comunicar com as pessoas, não gosto de cantar pelos smartphones, sempre fui educada para dar emoções às pessoas de uma forma muito pessoal e ao vivo. E de repente tudo isso não fazia sentido, porque passamos a fazer tudo online. Fiquei muito chateada. E quando percebi que a covid-19 não ia terminar tão cedo comecei a explorar o meu canal de YouTube não só sobre música mas também sobre viagens. Aliás, há lá uma história muito engraçada sobre Lisboa, mas sobre de comida e receitas. Comecei a gostar muito desta nova forma de comunicar. Hoje em dia sou muito ativa nas redes sociais, e até dou aulas numa universidade coreana sobre comunicação nas redes sociais. Sem o covid-19 não seria a pessoa que sou hoje. Tive que aceitar o novo normal e a nova realidade. E, com isso, abriu-se todo um novo mundo anteriormente desconhecido..Citaçãocitacao"Ganhar um reconhecimento [Grammy] desse género é uma grande honra. E para onde quer que vá mencionam-no sempre.".E agora com a pandemia mais controlada, tem conseguido viajar e trabalhar? Por estes dias vou estar a viajar pela Europa a fazer alguns, poucos, concertos e a dar master classes com todos os cuidados e muitos testes para proteger-me e proteger os outros. Todos os grandes concertos, em Paris e Praga, por exemplo, foram reagendados para 2022 e 2023. Por isso agora é fazer as coisas com calma..Sempre quis ser cantora lírica? Foi por influência de alguém na família? Na minha família ninguém é músico, mas a minha mãe tinha o sonho de ser cantora de ópera. Não o concretizou por causa da Guerra na Coreia e da pobreza e crise política que assolou a Coreia durante nos anos 1950. Mas quando estava grávida de mim só ouvia os discos da Maria Callas. Ela traçou o meu destino..E teve prazer nessa escolha que a sua mãe fez por si? Não, no início não tive. Comecei a ter aulas de piano aos quatro anos, e quando comecei a crescer a minha mãe fez muita pressão... Tive de estudar ballet clássico, aprender a desenhar, a patinar, etc. Foi muita pressão. Mas, nessa altura, todas a mães coreanas eram obcecadas com a educação dos seus filhos. Por isso hoje a Coreia do Sul é um país com uma economia tão forte. Mas eu era muito infeliz, não percebia porque tinha de fazer e aprender aquilo tudo, pois o meu sonho era ser veterinária. Mas depois, aos 18 anos, fui viver para Itália para estudar ópera e a minha nova vida começou. Na altura pouco se viam mulheres asiáticas a cantar ópera. E quando comecei a cantar no conservatório de Santa Cecilia, em Roma, os professores ficaram admirados com a minha qualidade no canto, a acompanhar o piano, o saber dançar... foi muito fácil para mim. Já estava tudo preparado pelo treino que a minha mãe me deu. Claro que tive de estudar a história europeia, etc., mas até isso foi fácil porque sempre fui uma criança curiosa. Acho que isso é muito importante para os artistas. Aliás, hoje em dia podia dedicar-me a cantar sempre as mesmas coisas e a ganhar dinheiro com isso, mas o facto é que quero aprender coisas novas. Não sou a típica prima donna, sou muito ativa, adoro desporto, adoro futebol, sou uma grande, grande fã do Cristiano Ronaldo, adoro-o! E por gostar de desporto cantei na abertura do Mundial de Futebol da Coreia/Japão (2002) e também na abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim (2008) e nos ParaOlímpicos de Pyeongchang (2018). Acho que a música, desporto e a comida podem e devem estar ligados..Com a mudança aos 18 anos, sozinha para a Europa, sentiu muitas dificuldades? Comecei a atuar em grandes palcos da ópera mundial graças aos grandes maestros Von Karajan, Zubin Mehta e Lorin Maazel entre outros. Fiz a minha estreia em 1986 no papel de Gilda no Rigoletto de Verdi. E fui a primeira cantora de ópera asiática a fazer uma grande carreira mundial. Acho que tudo o que aconteceu e tem acontecido é um milagre. No início da carreira tive algumas recusas em trabalhar comigo por ser asiática. Diziam que cantava muito bem mas que não podia perceber as óperas europeias. Não tem a ver com racismo, atenção, acho que alguns dos diretores que me recusaram tiveram receio de mim. Mas percebo, se fosse uma produção coreana seria estranho ver uma mulher loira de olhos azuis a cantar em coreano. Apesar de ser ambiciosa, sempre aceitei os diferentes pontos de vista. Aconteceu-me cerca de seis vezes ao longo dos meus 35 anos de carreira. Mas sempre que aconteceu, depois sucederam-se coisas muito interessantes. Sou muito positiva..Tem uma história interessante com o maestro Herbert Von Karajan que disse que uma voz como a sua só aparecia de 100 em 100 anos e que tem a "voz do céu".... Sim, a história é muito curiosa. Venho de uma família simples da classe média coreana. Na minha casa, no meu pequeno quarto, junto à minha pequena cama tinha uma grande foto do maestro Von Karajan, uma famosa imagem dele de olhos fechados a conduzir a Filarmónica de Viena. Recebi-a aos oito anos e até mudar-me para Itália aos 18, era a primeira e última imagem que via todos os dias. Dizia-lhe bom dia e boa noite (risos). Anos mais tarde conheci o maestro numa audição para a ópera Un Ballo in Maschera, de Verdi, no Festival de Salzburgo, e ele quis falar comigo primeiro, antes de todas as outras cantoras. Quando o vi, ele já estava doente, disse-lhe que estava à espera daquele momento há muito tempo e pedi-lhe para ver os seus olhos de perto e tocar-lhe no cabelo. Para mim era como se o conhecesse há anos. Lembro-me de o Plácido Domingo achar que eu estava maluca ao fazer aquilo. Fiquei com o papel e fui das últimas pessoas a estar com o maestro antes de ele morrer (em 1989). Nos ensaios pedia-me sempre para eu ficar com ele e acompanhá-lo quando se ia embora. Foi como uma relação de avô e neta. Na véspera da sua morte, num sábado, ele ficou a ensaiar até tarde e lembro-me que estava com algumas dificuldades respiratórias. Disse-lhe para ir descansar. Acompanhei-o até se ir embora. No dia seguinte soube, pelas notícias, da sua morte. Foi muito difícil. Fizemos a atuação em sua memória e não sei como consegui cantar..O facto de ter ganho um Grammy mudou a sua carreira? Sim, um pouco. Porque ganhar um reconhecimento desse género é uma grande honra. E para onde quer que vá mencionam-no sempre. Há outros prémios importantes que tenho ganho. A minha canção Simple Song Number 3 do filme Youth (2015), realizado por Paolo Sorrentino e que foi nomeada para o Óscar de melhor canção, e que ganhou outros prémios, foi muito importante, mas ganhar um Grammy é diferente..Se alguém jovem quiser seguir a carreira como cantor ou cantora clássica, que conselhos dá? Tenho de ser honesta, esta é uma das profissões mais duras que existem. É a voz que é o amplificador e às vezes cantamos para duas ou três mil pessoas, o que não é fácil. Por vezes ficamos doentes outras estamos constipados, e isso significa que não podemos cantar, o que é das coisas mais terríveis que podem acontecer a uma cantora de música clássica. O que não acontece tanto com cantores ou cantoras pop, que podem recorrer à amplificação. Para mim, que sou soprano e que imito o cantar os pássaros ou da flauta e tenho que cantar tecnicamente na perfeição sons puros e cristalinos, a vida pode ser quase miserável. Temos de nos deitar cedo, não podemos beber vinho do Porto na noite anterior (risos), não podemos comer comida coreana que é muito picante, o ar nos aviões pode estar seco, temos que nos tapar para não apanhar correntes de ar. A nossa vida depende de um pequeno músculo vocal. E depois há que falar do stress, pois quando somos conhecidos as pessoas esperam sempre a perfeição, independentemente daquilo que nos pode afetar na vida pessoal. Para alguém que queira ser cantor ou cantora, acho que tem nascer com força mental e física para este trabalho, isto para atingir um nível alto. Tem de ser fisicamente e mentalmente muito forte. E tem que aprender a estar sozinho e, ao mesmo tempo, ser positivo e social, porque temos de aprender a trabalhar com outros. Às vezes não estamos contentes com o maestro ou com o tenor com que se partilha o palco, mas temos de aprender a lidar com isso. E depois sentimos muitas saudades de casa, da nossa família, dos nossos animais. Ou seja, se for uma pessoa fraca e mais emocional escolher esta profissão pode ser um grande problema. Às vezes perguntam-me se numa próxima vida gostaria de voltar a ser cantora. Claro que não! Quero ter uma vida normal (risos)..Citaçãocitacao"Fado? Com aquela guitarra, com aqueles vestidos pretos e com aquele nível de sentimento não me atrevo sequer a tentar, só mesmo estar na audiência a ouvir".E o próximo ano? Já tem planos para o que vai fazer? Este ano vou lançar o meu novo álbum Lux 3570, que assinala os meus 35 anos de carreira e os 70 anos do ensemble barroco I Musici - fizemos uma colaboração para celebrar ambas as datas. Já gravei muitos discos e muito diferentes, de musicais a óperas, a bandas sonoras de filmes, e agora estou a aprender russo para poder cantar e gravar um disco em russo. Vai ser um grande desafio e a minha maior prioridade no próximo ano. E continuo a fazer as master classes, sou júri em competições internacionais e estou a cuidar de jovens cantores..Alguma vez cantou fado? Fado? Com aquela guitarra, com aqueles vestidos pretos e com aquele nível de sentimento não me atrevo sequer a tentar, só mesmo estar na audiência a ouvir. A relação de amor com Portugal é tardia mas tenho a certeza que vai ser para sempre. Estou mesmo a dizer a verdade. Muitas vezes nos finais de tarde calço os meus ténis e vou passear. Há locais mágicos nesta cidade. Gosto mesmo de Lisboa!.filipe.gil@dn.pt