Com mais de dois milhões de armas para uma população de 8,5 milhões de habitantes, a Suíça é um dos países com mais armas per capita - 28,3 por cem habitantes, mesmo assim longe das 120 por cada cem americanos. Apesar disso, o país não regista nenhum tiroteio desde 2001, quando um homem entrou no parlamento de Zug e matou 14 pessoas antes de se suicidar. Neste domingo, o país que desenvolveu o conceito de "cidadão-soldado" e organiza um concurso anual para ensinar os adolescentes a disparar vai às urnas num referendo para reforçar o controlo das armas. Mas mais do que a tradição de tiro nacional, em jogo está a permanência da Suíça no espaço Schengen e a relação com a União Europeia (UE)..Depois dos atentados de 2015 que fizeram 130 mortos em França, a UE decidiu adotar uma lei para tornar mais difícil o acesso às armas automáticas e semiautomáticas, muitas vezes usadas por terroristas em ataques como os de Paris. A diretiva europeia entrou em vigor em 2017, mas a Suíça, enquanto país que pertence ao espaço Schengen, também tem de adaptar a sua legislação. Perante este cenário e após a diretiva da UE ter sido aprovada pelo Parlamento helvético, em 2018, a Comunidade de Interesses do Tiro Suíço lançou um referendo (bastam 50 mil assinaturas para o fazer na Suíça) para tentar travar a sua entrada em vigor.."Como Estado Schengen-Dublin, a Suíça decidiu adotar as modificações do direito europeu. As medidas previstas são, nomeadamente, estabelecer com precisão a origem das armas, lutar mais eficazmente contra o mercado negro e melhorar o intercâmbio de informações entre os Estados Schengen como, por exemplo, saber a quem foi recusada a compra de uma arma na UE. Os opositores desta adaptação lançaram o referendo, considerando a lei alarmista e inútil para a luta contra o terrorismo e a criminalidade, inconstitucional e contrária à vontade do povo", explicou ao DN o embaixador da Suíça em Lisboa. Para André Regli, os que se opõem à transposição da diretiva europeia para a lei suíça "consideram que ameaça o direito de possuir uma arma e a tradição suíça do tiro desportivo"..A UDC - lembram-se do cartaz das ovelhas brancas a expulsar a ovelha negra e do referendo contra os minaretes? Eram eles - é o único partido suíço a apoiar o "não" no referendo. Denunciando a "ditadura da UE", apela aos eleitores para defenderem o direito dos suíços a possuir uma arma. Mas para vencer precisam de mais do que os 30% que tiveram nas eleições federais de 2015, em que elegeram 65 dos 200 lugares no Conselho Nacional..A pátria de Guilherme Tell."O Guilherme Tell adormecido em cada um de nós é convidado a rebelar-se contra a ditadura da UE cujo projeto, a acreditar em alguns, seria o desarmamento da Suíça", escreve Yelmarc Roulet no editorial do Le Temps de 15 de maio. Um toque de ironia, claro, uma vez que o texto desmonta os argumentos dos que se opõem a uma lei das armas mais restritiva, sublinhando que as alterações "são mínimas". Os suíços continuam a ter direito a ficar com a arma após o serviço militar desde que tenham licença, as regras para os caçadores não mudam e adquirir uma arma continuará a ser possível sem qualquer teste médico ou psicológico..Só os praticantes de tiro desportivo que tenham uma arma semiautomática terão de provar fazer parte de um clube de tiro ou que praticam a atividade com regularidade. A arma terá de ser registada junto das autoridades caso não o esteja já. "Um sacrifício mínimo para manter o essencial: afastar o risco de exclusão da participação da Suíça no espaço Schengen-Dublin ao qual pertencemos desde 2005 e do qual nos orgulhamos, seja em termos de segurança ou de gestão das migrações", acrescenta ainda o Le Temps..Se a Suíça disser não à transposição da diretiva europeia, terá de deixar, num prazo de seis meses, de ser um Estado Schengen-Dublin (a Convenção de Dublin visa agilizar o processo de candidatura para os refugiados determinando qual o Estado membro responsável por um requerente de asilo, e geralmente é aquele por onde entrou). A saída só poderia ser evitada se todos os Estados membros da UE e a Comissão Europeia aceitassem abrir uma exceção para a Suíça - isto num prazo de 90 dias após a votação..Poucos homicídios com arma de fogo.O grande número de armas na Suíça - os últimos números falam em 2,4 milhões, mas em 2011 a ONG Small Arms Survey chegou a apontar 3,4 milhões - deve-se não só ao facto de o serviço militar ser obrigatório, mas também porque todos os homens entre os 18 e os 34 anos considerados "aptos ao serviço" recebem uma pistola ou uma espingarda. Muitos guardam a arma em casa, mas outros preferem entregá-la num arsenal, onde a podem ir buscar quando a querem utilizar..Sendo o Exército suíço uma espécie de milícia armada, todos os anos os homens em idade regulamentar devem cumprir umas semanas de treino para manter a habilidade..Mas a verdade é que num país com uma taxa de homicídios baixíssima, como é regra na Europa Ocidental, só 18% dos crimes praticados na Suíça envolvem uma arma de fogo. Além do tiroteio em Zug, há outros exemplos: em 2017, um homem matou a ex-companheira a tiro em Neuchâtel, disparos num centro islâmico em Zurique fizeram três feridos em 2016 e, em 2013, um homem abateu três pessoas na aldeia de Daillon.."Temos respeito pelas armas, por isso elas não constituem um problema", explicava o antigo conselheiro federal Samuel Schmidt a Michael Kosta, o "repórter" enviado à Suíça pelo programa satírico Daily Show no início do ano para tentar perceber a cultura pacífica das armas naquele país..Tendo passado "quase mil dias no serviço militar" e tendo chegado a tenente, o embaixador André Regli sublinha a importância dessa experiência na "aprendizagem da liderança". O diplomata garante ainda que apesar de ter havido vários referendos para abolir o sistema suíço, "foram sempre recusados por larga maioria"..Neutralidade armada.É hábito dizer-se que a Suíça não tem um exército, ela é um exército. Apesar disso, o país não se envolve diretamente num conflito armado desde 1815, tendo nos anos mais recentes alguns dos seus soldados participado em missões de manutenção da paz..Esta "neutralidade armada" tornou-se imagem de marca de um país que está totalmente rodeado por Estados da UE. De acordo com a sua lei, a Suíça "não pode estabelecer alianças militares a menos que seja atacado. O país não deve tomar partido em conflitos internacionais e não pode dar direito de passagem a forças estrangeiras". Esse desejo de neutralidade é tão grande que só em 2002, e através de referendo, a Suíça votou a adesão à ONU..Criada em 1291 a partir de um núcleo inicial e constituída por 26 cantões, com quatro línguas oficiais - francês, alemão, italiano e romanche -, a Confederação Suíça conseguiu tornar-se sinónimo de paz. Até a sua bandeira (vermelha com a cruz branca) se tornou inspiração para a da Cruz Vermelha, que é exatamente o inverso. Esta organização de apoio humanitário, neutra e imparcial, foi fundada em 1863 em Genebra pelo suíço Jean Henri Dunant. Sede de várias organizações internacionais, desde a própria Cruz Vermelha à Organização Mundial do Comércio, a Suíça, apesar da paixão pelas armas, é bem mais famosa pelos bancos, pelos relógios de luxo ou pelo chocolate da melhor qualidade..Resta saber se quando forem hoje às urnas os suíços vão deixar essa paixão pôr em causa a sua permanência no espaço Schengen, ditando um isolamento difícil de sustentar. Já escrevia o Le Temps em editorial: "A lei das armas consagra a integração da Suíça no seu ambiente imediato, na sua pertença ao concerto das nações, mesmo se ela escolheu um caminho que não passa pela adesão à UE. Em vez de discutir a origem de uma reforma, é preciso ver o interesse geral que esta defende."