Sublimes tentações no cimo dos Himalaias

A nova adaptação do romance de Rumer Godden traz Gemma Arterton no papel da freira responsável por um convento improvisado na paisagem inebriante da mais alta cadeia montanhosa do mundo. <em>Black Narcissus</em> chega amanhã ao Disney+, em formato minissérie.
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Um dos grandes arrependimentos de Rumer Godden (1907-1998), autora inglesa que cresceu na Índia e escreveu sobre ela, foi ter permitido à dupla The Archers, Michael Powell e Emeric Pressburger, uma adaptação cinematográfica do seu primeiro bestseller. Puro capricho, bem entendido... Publicado em 1939, Black Narcissus - para desconforto da escritora - ficou na memória coletiva muito graças a essa triunfal adaptação de 1947, Quando os Sinos Dobram, cujos cenários de estúdio, rematados com um espantoso Technicolor, alcançaram dois Óscares (um para a fotografia, outro para a direção artística). E foi precisamente o facto de se tratar de uma produção de estúdio, a olhar uma cultura pelo lado "superficial" e colorido, em vez de procurar o realismo in loco, neste caso, dos Himalaias, que feriu a suscetibilidade de Godden: irritava-se sempre que alguém elogiava as muitas e evidentes qualidades do filme.

Ora, o aspeto em que a nova versão de Black Narcissus se demarca da obra exemplar de Powell e Pressburger é no respeito por um certo espírito do lugar, já que parte da rodagem se fez no Nepal e os nativos são interpretados por atores de ascendência indiana. De resto, é impossível fugir à sombra do gigante. Esta minissérie de três episódios, assinada por Charlotte Bruus Christensen (que acumula a direção de fotografia), e produzida pelo próprio neto de Emeric Pressburger, Andrew Macdonald, fica no meio-termo entre a referência do filme e a letra do romance - necessariamente com uma abordagem literária mais meticulosa em relação ao primeiro.

Remetendo para os tempos do Império Britânico, Black Narcissus conta a história de um grupo de freiras missionárias enviadas para um palácio remoto, situado num penhasco dos Himalaias, com o propósito de transformar o edifício abandonado num convento e escola para as crianças locais. Incumbida pela madre superiora (Diana Rigg, num dos seus últimos papéis), a orgulhosa irmã Clodagh (Gemma Arterton) lidera as quatro freiras que seguem para essa paisagem exótica com misteriosos efeitos secundários. Quando lá chegam, deparam-se com a atmosfera malsã, um vento que se entranha na alma, e umas vistas que deslumbram na mesma medida em que atemorizam. O palácio, outrora harém de um general indiano, conserva o ADN do pecado em ilustrações nas paredes, que as freiras tapam com cortinas improvisadas, na esperança de ser tudo uma questão de encobrimento das ruínas do desejo. Só que não. Há algo mais tóxico no ar, fantasmas que perturbam o sono e aclaram as ideias. Sobretudo as da irmã Ruth (Aisling Franciosi), a jovem que se deixa tomar pela assombração.

Acima de tudo isto está a presença de um homem: Mr. Dean (Alessandro Nivola). Enquanto intermediário com a comunidade local, ele representa a tentação, o "corpo estranho" masculino que se impõe pelo à-vontade na casa, enquanto desafia o reprimido fervor carnal da irmã Clodagh. Entre os dois e a possuída irmã Ruth, as leis do desejo entram em conflito com a austeridade religiosa. E aqui, mais do que no clássico de Powell e Pressburger, a química que une Mr. Dean e Clodagh ganha uma explícita sugestão erótica, nomeadamente, através dos fogosos flashbacks dela (no filme essa sugestão existia num plano mais intelectual).

Nas margens da intriga novelesca, o livro de Rumer Godden é sobre a ferida do colonialismo, ou o falhanço dos ingleses na Índia; daí que, numa dimensão menos ascética, o mal-estar das freiras esteja também ligado à sua inaptidão face ao projeto comunitário. Nesse tópico, a minissérie fica-se pela rama, para dar prioridade a um retrato de atmosfera. Há tiques bastante dispensáveis de terror moderno, algum acomodamento aos valores de produção, mas é verdade que três episódios permitem degustar melhor as especificidades do romance de Godden. Inclusive dar mais peso dramático a uma ou outra personagem secundária, como a irmã Philippa (Karen Bryson), responsável pelo jardim do convento, que rouba uma cena inteira quando confessa à irmã Clodagh a sua necessidade de deixar aquele lugar. Explica ela - num momento de plena sintonia com a passagem do livro - que a beleza envolvente está a sobrepor-se à imagem de Deus no seu espírito. As freiras não devem amar flores, ainda que estas sejam oferendas divinas...

A sensualidade que impregna o ar naquele amaldiçoado penhasco dos Himalaias não é suficiente para deixar o espectador em pulgas, é certo. Nem sequer é muito forte a vertigem quando se toca o sino à beira do precipício (imagem simbólica do filme dos The Archers, recuperada de forma muito semelhante). Mas o novo Black Narcissus tem um trunfo chamado Gemma Arterton. Na pele da freira que lida com abismos interiores, ao mesmo tempo que procura controlar o ego na relação com as suas subalternas, ela não comete o erro de se colar à expressão da eterna Deborah Kerr. A sua Clodagh tem uma franqueza terrena que mina por dentro os clichés da ficção bem arrumadinha; e é aí que somos levados pelo vigor das badaladas. No fim de contas, vai-não-vai, até se sente algum batimento cardíaco.  

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