Subemprego científico e terceirização

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Numa conferência recente no Parlamento, dedicada à inovação científica e social, o debate passou rapidamente para a realidade da precariedade na Ciência. Em vez de robôs e inteligência artificial, a audiência demonstrou preocupação pelas condições em que é feita a investigação.

A ideia de showcases de um "mundo novo", que obriga a "novas práticas" e à "adaptação", não é nova. Cito um breve trecho do trabalho "Exposições Universais: Sociedade no século XIX", de Ana Carolina Gomes, Priscilla Piccolo e Ricardo Rey:

"As feiras mundiais passavam a imagem de que o trabalho disciplinado tinha capacidades redentoras, a propriedade era a meta a ser alcançada por todos e o esforço individual era vital para o crescimento económico do indivíduo e da nação."

Ao longo dos últimos dias, muitos comunicadores de Ciência precários construíram o Encontro Ciência 2018. Vários investigadores, igualmente precários, apresentaram investigação de ponta, num ambiente em que a precariedade se mantém tabu.

O que aconteceu no Parlamento demonstra a emergência da contradição (o contragolpe do Absoluto), em que a realidade fala mais alto.

Portugal está na cauda da Europa no que toca ao emprego nas indústrias de alta e média tecnologia (3,3% perante 6,1% de média da União Europeia), estando também atrás nas áreas de conhecimento intensivo (31,9% face aos 36,2% de média da União Europeia).

Trata-se de uma institucionalização mais vasta, na qual o emprego qualificado nunca foi uma aposta.

O subemprego científico não foi instituído pelo mercado privado. Ele surgiu no setor público, que institucionalizou a contratação por bolsas, integrada numa academia de cariz autocrático (revisite-se o "Homo Academicus" de Bourdieu).

A falta de direitos sociais dos nossos mais qualificados foi encarada como um tirocínio a que deveriam ser sujeitos, sufragado por prioridades gestionárias.

Estas ideias amplificaram-se com o recuo do financiamento do Estado (promovido por diferentes Governos), utilizando-se o subfinanciamento para validar a degradação das condições de contratação. Mesmo quando existe financiamento (através de projetos, ou outros mecanismos de financiamento), os direitos sociais passaram a segundo plano.

Criou-se a contradição de uma Ciência financiada pelo Estado Social (nacional, ou europeu), que promove a degradação contratual dos mais qualificados.

Mais recentemente, o subemprego científico foi acompanhado de uma terceirização (outsourcing), com um abuso da figura de associações sem fins lucrativos, numa fuga ao escrutínio das contas públicas, bem como à autoridade reitoral.

Mesmo perante a garantia de financiamento por parte do Governo e da Fundação de Ciência e Tecnologia, instituições como o Instituto Superior Técnico procuraram utilizar esta terceirização para converter as bolsas em contratos pelo Código do Trabalho. O objetivo foi impedir que no final dos contratos precários pudesse existir qualquer oportunidade de concurso de acesso à carreira.

Conhecendo-se os resultados desastrosos das parcerias público-privadas. O nosso modelo de organização da Ciência merece ser olhado de frente e pensado de forma melhor.

É preciso perceber que quando lidamos com mais de 900 milhões de euros financiamento (verbas europeias e nacionais), o que está em causa é a contratação dos nossos mais qualificados.

Não podemos ter instituições públicas financiadas pelo Estado Social a deturparem e a penalizarem esse mesmo Estado e os seus princípios.

Temos também de pensar muito bem o próximo quadro comunitário de apoio, por forma que saibamos construir finalmente uma espiral positiva da qualificação e do mérito. Em si, temos aqui uma Missão, que o país deve abraçar como objetivo primordial.

Nessa lógica de Missões, tem de ser óbvio o requisito obrigatório do cumprimento da Carta Europeia do Investigador e do Código de Conduta para o Recrutamento de Investigadores para qualquer contrato de financiamento.

Docente Ensino Superior e Presidente da Direção do SNESup

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