Sputnik. A agência alternativa que dá voz à propaganda russa

Promovem, sem rodeios, uma agenda pro-Rússia e convidaram um grupo de jornalistas dos quatro cantos do mundo para conhecerem o seu ponto de vista. Bem-vindos à Sputnik, uma agência noticiosa assumidamente parcial.
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Anton Anisimov veste bem a camisola da empresa em que trabalha - e não é só por causa do pulôver laranja (uma das cores da marca Sputnik) que enverga enquanto apresenta a agência noticiosa estatal russa a uma plateia de jornalistas dos quatro cantos do mundo. "Promovemos uma agenda pró-Rússia", diz, sem rodeios, o diretor adjunto do projeto, assumidamente parcial, que quer "uma alternativa" aos media ocidentais.

"Porque havíamos de ter uma agenda pró-EUA?", contrapõe o responsável - como se ainda estivesse no mundo bipolarizado dos tempos da Guerra Fria. Ali, na moderna sede da Sputnik (agência internacional fundada em 2014, para suceder à RIA Novosti e à rádio Voz da Rússia), no coração de Moscovo, cruzam-se os conceitos "visualizações", "seguidores" e "notícias de última hora" com os de "propaganda" e da dicotomia "nós/eles", próprios de outra era. Pondo em prática o lema da empresa - "telling the untold", "dizer o que não foi dito", numa tradução livre -, Anton Anisimov e Vasily Pushkov, responsável pelos projetos internacionais da Sputnik, tentam expor o que julgam que falta contar: o ponto de vista russo sobre aquela máquina mediática, que é vista no Ocidente como um instrumento do governo russo, acusado de interferir em disputas eleitorais como as últimas eleições presidenciais EUA.

Os dois chefes recebem um grupo de 39 jornalistas, de meios de comunicação social de 23 países - entre os quais o DN -, convidados para uma série de seminários e workshops organizados pela Sputnik, em colaboração com a Rossotrudnichestvo (Agência Federal para a Comunidade de Estados Independentes, Compatriotas Que Vivem no Exterior e Cooperação Humanitária Internacional). "Há uma grande quantidade de mal-entendidos que queremos evitar, pondo jornalistas a falar uns com os outros, cara a cara", explica o responsável pelos projetos internacionais. O primeiro esclarecimento, no entanto, é sobre o papel da Sputnik: contar o que as grandes agências ocidentais (Reuters, France-Presse, Associated Press e Deutsch Presse-Agentur) - Vasily prefere chamar-lhes mainstream - não contam. "Essas quatro dão sempre uma versão igual dos acontecimentos. A nossa agenda é dar aos jornalistas a alternativa", refere.

"Todos apoiam os seus países"

A alternativa é o ponto de vista russo - e isso é assumido sem pudores por Anton Anisimov. "Todos os media apoiam a agenda dos seus países e são dependentes das suas fontes de financiamento. Se um jornal pertence a um fabricante de automóveis, não publica uma notícia a dizer que os carros dessa empresa são uma bosta", aponta o diretor adjunto. Ou seja, o financiamento estatal, de 93 milhões de euros por ano (as restantes receitas da agência provêm dos subscritores dos serviços noticiosos), acaba por pesar.

Vasily Pishkov desdramatiza, dizendo que um órgão de comunicação social "independente" não é necessariamente um media "livre": "Mesmo que não sejas dependente do governo, há um tipo algures que decide que salário recebes. E não há muita gente disposta a pagar por algo de que não gosta", aponta. E Anton Anisimov assegura, ainda assim, que isso não condiciona demasiado o seu trabalho diário. "Se estamos a ser financiados, temos um certo nível de dependência. Mas não escondemos informação. Se o fizéssemos estaríamos a perder para os outros media", refere.

O grau de comprometimento da Sputnik com o governo russo é frequentemente questionado. Não falta quem, por baixo do seu logo laranja e preto, entreveja a efígie de Vladimir Putin. Nem quem considere os seus serviços em 30 línguas (incluído português do Brasil) e redações espalhadas pelo mundo (do Rio de Janeiro a Pequim) um dos braços da "mais efetiva operação de propaganda do século XXI", como lhe chamou o jornal norte-americano The New York Times. "Sabemos que dizem no Ocidente que fazemos propaganda. Nunca nos ouviram dizer que [as cadeias televisivas] BBC ou CNN também o fazem, nem dissemos às pessoas para não as verem. Simplesmente, é preciso ver a imagem completa", reage Anton Anisimov.

Mais do que uma imagem incompleta, a Sputnik, assim como a estação televisiva RT (antes conhecida como Russia Today), é acusada de apresentar uma leitura distorcida da realidade - estando a ser investigada pelas autoridades norte-americanas, por alegadas tentativas de interferência nas eleições presidenciais dos EUA, em 2016 (caso que até levou a que o Twitter deixasse de aceitar publicidade da agência e da RT). Acusações similares surgiram, neste ano, durante as presidenciais francesas e as legislativas alemãs.

"RT e Sputnik foram agentes de influência que em diversas ocasiões espalharam notícias falsas sobre mim e a minha campanha", queixou-se o presidente da França, Emmanuel Macron, após a agência noticiosa estatal russa ter divulgado uma entrevista em que Nicolas Dhuicq, deputado d"Os Republicanos (partido do candidato presidencial François Fillon), o acusava de ser homossexual e ter o apoio de um "riquíssimo lóbi gay". "Nunca recebi um telefonema a dizer como devíamos cobrir as eleições francesas. Fomos acusados de tentar prejudicar Macron, mas tentámos ouvir os diferentes lados. Ele é que nunca aceitou os nossos pedidos de entrevista", defende-se Anton.

"A verdade está algures no meio"

De resto, o tom e o comprometimento da agência são igualmente assumidos pelos outros repórteres da casa, nos seminários ministrados aos convidados. "Se a Sputnik é agressiva não é mais do que outros media são em relação a nós", alega Irina Kedrovskaya, jornalista responsável pela secção de multimédia. "Nos conflitos modernos os jornalistas deixaram de ser vistos como neutros: são conotados com um dos lados", contextualiza, por sua vez, Valery Melnikov, fotojornalista habituado a trabalhar cenários de guerra (Chechénia, Ossétia do Sul, Crimeia...), onde só é possível acompanhar um lado das trincheiras.

No fundo, a convicção mais comum é de que "a verdade está algures no meio", entre a cobertura dos media ocidentais e dos russos. Isso mesmo diz Oleg Schechdrov, como conclusão antecipada de um workshop em que foi pedido aos convidados que comparassem as abordagens mediáticas ocidental e russa de dois assuntos, relacionados com o uso de armas químicas na guerra da Síria e a escalada de tensão entre EUA e Coreia do Norte.

O experiente jornalista, que ao fim de quatro décadas de carreira dá formação aos jovens quadros da Sputnik, censura o uso de "expressões emocionais" como "regime bárbaro de Assad" nos media ocidentais, mas não vende ilusões quanto à objetividade da cobertura russa. Schechdrov reconhece que se um repórter local tentasse fazer um acompanhamento imparcial e equilibrado de um tema como a disputa da Crimeia "o feedback seria muito negativo" - e lembra episódios de contestação popular à rádio Eco de Moscovo (cuja editora Tatiana Felguenhauer foi esfaqueada no mês passado). Para o veterano, é preferível uma vida "confortável", escrevendo sobre temas "populares", do agrado das massas: assim se veste, ali, a camisola da empresa onde se trabalha.

O jornalista viajou a convite da Rossotrudnichestvo (Agência Federal para a Comunidade de Estados Independentes, Compatriotas Que Vivem no Exterior e Cooperação Humanitária Internacional)

Em Moscovo

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