José Manuel Barroso, o meu antigo camarada do DN e até hoje amigo Zé Manel, foi há dias condecorado com o Grande Colar da Ordem da Liberdade. Ele e, como faz questão de sublinhar, "mais 25 militares de Abril". Acrescenta o antigo capitão miliciano que "foi uma cerimónia bonita, ali no antigo Museu dos Coches. Nunca pensei ser condecorado perante o Presidente, o ministro da Defesa, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e os chefes dos três ramos. Emocionei-me. Fiquei feliz. A Ordem da Liberdade é especial. Achei que me assentava bem, a mim e aos outros." Com certeza que assenta, sabem aqueles que o conhecem e à sua história desde aquele dia de agosto de 1943 em que nasceu nos Açores, no Pico, à qual chama de "a minha ilha" apesar de lá ter vivido só seis anos, mas onde voltou algumas vezes e pela qual sente "sólidas raízes afetivas"..A conversa com o antigo jornalista do DN é por videoconferência, consequência da pandemia. Vejo uma mancha de vegetação através da janela e o Zé Manel diz ter a sorte de morar numa zona de Alvalade com um jardinzinho. Enquanto bebe um café com leite e come um croissant com fiambre, explica que nestes dias de confinamento dá de vez em quando uns passeios higiénicos pelo bairro lisboeta com o neto Henrique e navega muito no Facebook, onde tem descoberto picoenses. "Fui conhecendo muita gente lá da minha ilha. Entre eles um grande escritor, que merece atenção, pois te uma obra belíssima, o poeta Urbano Bettencourt.".Conhecido também por ser sobrinho de Maria Barroso, e logo de Mário Soares, pergunto ao Zé Manel como é que alguém com raízes no Algarve nasce numa ilha açoriana. "O meu pai, que era advogado, foi colocado como notário no Pico, mais tarde em Mourão e a seguir em Monchique. Acabou por vir para o Barreiro, mas então eu já vivia em Lisboa. Desde os 15 anos andava no Colégio Moderno, dos meus tios.".Os anos no Colégio Moderno, fundado por João Soares, ministro da Primeira República e pai de Mário Soares, marcaram a formação do futuro jornalista. Álvaro Cunhal foi ali regente de sala de estudos.."Desde os 16 anos, eu era militante do Partido Comunista. Quando fui para a universidade, para o ISEG, elegeram-me presidente da associação de estudantes de económicas. E aí começaram os problemas, porque o governo não homologou e mandaram-me para a tropa. Tinha uns 21 ou 22 anos. Aos dirigentes universitários que tinham ficha política era mandá-los para a tropa, como forma de degredo", diz, entre risos. Hoje sabe que ser sobrinho de Soares, advogado que viria a fundar o PS, lhe garantiu a atenção da PIDE..O destino foi a Madeira, e não se deu mal por lá. Mesmo na tropa, teve o primeiro contacto com o jornalismo e até se casou. "Depois de fazer a minha especialidade em Cascais, em artilharia antiaérea, fui para lá. A Madeira era um mundo à parte, uma ilha com uma história rica de resistência ao salazarismo. Em certa altura salientei-me porque ia aos debates e conheci um grupo de gente da minha idade, onde estava o Vicente Jorge Silva, e um dia apareceu a oportunidade de alugar o título de um jornal, o Comércio, e começámos a fazer um jornal por brincadeira", relembra. A família proprietária do Comércio do Funchal, que editava apenas um número por ano para manter o título, aceitou entregá-lo ao Zé Manuel e a Vicente Jorge Silva, futuro fundador do Público. Foi uma aventura: "Eu assinava José Manuel Barroso nas coisas que não envolviam política, como o desporto. Tinha uns seis pseudónimos, para fingir haver muitos colaboradores. De início não éramos muito vigiados. Na altura, eu era o tipo mais politizado do grupo. Vinha das lutas académicas. O Vicente, que era a coluna da equipa, escrevia basicamente sobre cinema. Como defendíamos a autonomia, éramos olhados com simpatia até pelos gajos da situação. Quando começamos a ter êxito no continente, então aí o regime olhou para nós.".Na Madeira, fez três anos dos quatro do serviço militar. Depois casou-se com uma madeirense, "que é a mãe da minha filha Maria Ana. Ela era advogada e fiquei lá mais um ano, já civil". Foi nessa época que deixou o PCP. "Eu era um comunista especial, muito aberto, muito rebelde, não gostava de receber ordens e fazia perguntas incómodas.".Cá do meu lado do computador bebo um nespresso e como o croissant comprado na Eric Kayser das Torres de Lisboa, terceira sede do DN em 156 anos. Conheço por conversas antigas a ligação de Zé Manel ao general António de Spínola, depois do 25 de Abril presidente e marechal, e peço que conte como foi a ida para a Guiné de um civil que já trabalhava em Lisboa no República.."Escasseavam capitães e então começaram a chamar os alferes que não tinham ido ao ultramar. Estive dois anos fora da tropa e fui chamado para Mafra. E sou mobilizado para a Guiné. Fui para Bissau no mesmo avião e lado a lado com o Carlos Matos Gomes. Somos amigos desde essa viagem. Foi um dos condecorados agora. Desde Jorge Sampaio que não havia condecorações aos militares de Abril. Marcelo Rebelo de Sousa não quis terminar o primeiro mandato sem reatar essa homenagem", conta Zé Manel..E prossegue: "Estive dois anos na Guiné. A relação com Spínola começou lá. Eu tinha uma ideia horrível do Spínola, como normalmente tinha aqui a esquerda, que o homem era fascista, e quando fui para a Guiné o meu diretor de curso de capitão, uma pessoa extraordinária, o hoje general Pezarat Correia, escreveu ao então major Carlos Fabião "vai aí um que além de ser um bom militar é dos nossos". E então em vez de ir para o mato fui chamado para tratar da área da comunicação com o Spínola.".Foi em julho de 1972 que o então capitão miliciano chegou à Guiné. Portugal e o Futuro seria publicado em fevereiro de 1974, mas a preparação do polémico livro pelo governador começou nessa altura e Zé Manel acompanhou o processo de perto. "Spínola tinha uma visão gaullista do império. Achava que as populações indígenas não estavam ainda preparadas para a independência, mas que era necessário acelerar a autonomia até chegar a uma forma de autodeterminação. Ele defendia uma reforma que propôs ao Marcelo Caetano, que não gostou, que era a criação de um Estado federal. Portanto, Spínola aprendeu antes em Angola, e com os ensinamentos militares das guerras de independência, que a solução política era avançar para a autonomia.".Falamos da Guiné, que conheci já em reportagem para o DN e que mesmo antes das chuvas tem rios enormes, como o Cacheu. A dificuldade da guerra lá, maior do que em Angola ou Moçambique, vinha da geografia, em vários sentidos. "A Guiné era terrível. Um território pequenino. As infiltrações a partir dos vizinhos eram fáceis. Na época de chuvas, os rios ficam mares. Tudo jogava a favor da guerrilha. E Portugal teve problemas sérios, sobretudo depois do aparecimento dos mísseis que a União Soviética forneceu ao PAIGC, pouquinhos mas forneceu, e foram os russos que propuseram, explica..Sobre Spínola, diz Zé Manel, "era um grande chefe militar, um homem com uma integridade pessoal enorme e, em termos de política, um revolucionário dentro do regime. Tudo o que ele propunha era para quebrar com a inércia do regime. Uma vez estávamos a conversar e eu disse-lhe: "Ó meu general, mas o senhor assim vai ser um segundo Delgado a pensar o que pensa." E ele, que não tinha uma grande opinião sobre Humberto Delgado, respondeu: "Não, não, nem pense nisso, no dia em que eu saísse do exército para marcar uma posição política estava liquidado. Isto tem de ser feito a partir de dentro." À volta dele os mais spinolistas diziam "isto só vai à porrada"", recorda, entre risos..No 25 de Abril de 1974, Zé Manel estava na Guiné. Fazia parte da comissão política do MFA. "Tínhamos planeado, se o golpe falhasse em Lisboa, tomar conta da Guiné para chamar a atenção do mundo para o que se estava a passar em Portugal.".Saiu da tropa duas semanas antes do 25 de Novembro de 1975. "Não era militar de carreira, tinha de seguir a minha vida. Fiz sete anos de tropa", justifica. Sobre Ramalho Eanes, o general que seria o primeiro Presidente eleito em democracia, elogia-o, e muito, como a Spínola, mas com diferenças: "Eanes era um homem extremamente reto, íntegro, também crítico do regime de Salazar e Caetano, um homem que era apontado como um exemplo militar. Spínola era valente, tal como Eanes, mas era um homem explosivo, dividiu o mundo em duas partes, os contra ele e os a favor dele. Eanes não. É um homem de pensamento diferente, de coragem mas mais consensualizador.".Sobre o recém-falecido Marcelino da Mata, guineense que se tornou dos mais condecorados do exército português, o antigo capitão miliciano faz um pouco de contextualização. "Tínhamos milhares de efetivos guineenses na tropa portuguesa. Em África, a ideia de nação, de pátria, na altura, não era propriamente uma ideia que entendessem, entendiam mais o lado das raízes étnicas e o lado de quem lhes dava vida melhor. O africano é guerreiro por natureza. E tem uma relação com a morte muito próxima. Daí as carnificinas que vimos em África nas guerras civis pós-independências. O regime não tinha capacidade de completar as vagas do exército e começou a empregar africanos." E prossegue: "As rivalidades étnicas contavam muito. Uma parte da elite do PAIGC eram guineenses de origem cabo-verdiana. Os cabo-verdianos como eram mais preparados tinham mais escola, eram largamente usados na administração colonial. Como guerrilheiros, os balantas foram os mais numerosos. São uma etnia animista, agora muito conquistada pelo islão, rebeldes por natureza, eram um povo nómada, as mulheres cultivavam e tomavam conta dos filhos e eles vagabundeavam à caça. Era uma sociedade muito matriarcal.".Recordo-me de para o DN, no ciclo de golpes e contragolpes que se seguiu à guerra civil guineense de 1998, Zé Manel ter escrito muito sobre a componente étnica do que se estava a passar um quarto século depois da independência. "A Guiné tinha um corpo de milícias formados pelas populações que estavam do nosso lado e lideradas pelos chefes de aldeia, comandadas pelo Fabião, que falava as línguas todas. Um grande militar. E tinha o batalhão de comandos africanos, onde esteve o Matos Gomes e depois o Almeida Bruno e que, à medida que o tempo passava, foi graduando em oficiais os militares negros mais distintos. Foi feito no final um acordo com o PAIGC de que eles passavam à vida civil e não eram molestados, mas não foi cumprido.".E Marcelino da Mata? Insisto. "Era um extraordinário combatente, um tipo com uma enorme capacidade militar e coragem. Foi comando e depois passou a fazer parte de um grupo de operações especiais. É difícil dizer em África que se respeite tudo em termos de deontologia militar. Se for preciso matam-se uns aos outros. Estive em Moçambique, e um taxista, que fora combatente da Frelimo, diz-me esta coisa: "Ó senhor, o que passou aqui na nossa guerra civil não tem nada que ver com o tempo dos portugueses, aquilo foi um horror absoluto. As pessoas matavam-se umas às outras, cortavam narizes e orelhas, incendiavam casas." Não há nenhuma beatitude nas guerras, muito menos em África. Mas Spínola não permitia excessos. Às tropas portuguesa, até por uma razão de guerra psicológica, não lhes era permitido carnificinas. Mas a guerra é a guerra. Chegas a uma tabanca de palhotas, sabes que há guerrilheiros à civil e depois sais e és metralhado...".Quando voltou da Guiné, ainda em 1974, Zé Manel voltou também ao República. O jornalista, que então se assumia como PS, teve como colegas chegados Mário Mesquita, Jaime Gama e Álvaro Guerra. Depois foi para o Jornal Novo e daí para o Primeiro de Janeiro, neste caso para diretor. "Era o jornal mais prestigiado do norte, mas já decadente, o único do Porto não nacionalizado, por isso não teve apoio financeiro. Guerras políticas eram muitas. O PCP tentou influenciar através da tipografia, mas os donos entregaram o jornal ao CDS.".O DN é o destino seguinte de Zé Manel. A chefia da redação no Porto. E depois a vinda para Lisboa, para a sede na Avenida da Liberdade, como grande repórter. Estamos em 1992 e é quando, estagiário, conheço Zé Manel. "Foi o período mais feliz profissionalmente da minha vida. Assinei trabalhos sobre a Guiné, também uma série sobre as histórias desconhecidas do 25 de Abril, com as quais ganhei o prémio de jornalismo desse ano. Saiu em livro porque o Mário Bettencourt Resendes disse: "Isto é importante, vamos fazer um livro." Desse diretor, que admiro muito, afirma: "O Mário era um tipo moderno, de mente aberta, e quando havia algo contra a corrente não se amedrontava.".O próprio Zé Manel chegou a ser diretor interino do DN, em 2004. Recordamos esses tempos épicos, pois eu era subchefe de redação, tal como a indignação bem-humorada da equipa quando, meses antes, Durão Barroso vai liderar a Comissão Europeia e passa a pedir que o tratem por José Manuel Barroso. "Adorei ser diretor. Fiquei tristíssimo quando terminou. Acabo por ir para presidente da Lusa, mas termino a carreira em 2010, de volta ao DN, como o jornalista que sempre fui.".Estamos a chegar ao fim do brunch, que Zé Manel diz que, por ele, "teria sido no Hotel Ritz". Fico a saber que está a acabar um livro sobre o primeiro período da Revolução, do 25 de Abril até ao 28 de Setembro. Diz que é preciso explicar por que Spínola falhou tanto. "Talvez tenha acertado antes do tempo.".Não resisto a perguntar se é verdade que votou em Freitas do Amaral e não em Soares, que acabou por ganhar. "Votei no meu tio para primeiro-ministro quase sempre, com exceção da AD de Sá Carneiro, e em 1986, na primeira volta das presidenciais, votei nele contra Salgado Zenha. Na segunda votei em Freitas porque acreditava na ideia de um governo e um presidente da mesma área política. O meu tio sabia. Não foi fácil para ele aceitar a minha saída do PS, mas a relação acabou por ser calorosa. Ele não era pessoa de rancores", relembra Zé Manel, que neste confinamento por causa da covid-19 descobriu a tentação da poesia, "bem melhor, espero, do que os poemas da adolescência, quando escrevia para impressionar uma miúda mais velha". E ri-se.
José Manuel Barroso, o meu antigo camarada do DN e até hoje amigo Zé Manel, foi há dias condecorado com o Grande Colar da Ordem da Liberdade. Ele e, como faz questão de sublinhar, "mais 25 militares de Abril". Acrescenta o antigo capitão miliciano que "foi uma cerimónia bonita, ali no antigo Museu dos Coches. Nunca pensei ser condecorado perante o Presidente, o ministro da Defesa, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e os chefes dos três ramos. Emocionei-me. Fiquei feliz. A Ordem da Liberdade é especial. Achei que me assentava bem, a mim e aos outros." Com certeza que assenta, sabem aqueles que o conhecem e à sua história desde aquele dia de agosto de 1943 em que nasceu nos Açores, no Pico, à qual chama de "a minha ilha" apesar de lá ter vivido só seis anos, mas onde voltou algumas vezes e pela qual sente "sólidas raízes afetivas"..A conversa com o antigo jornalista do DN é por videoconferência, consequência da pandemia. Vejo uma mancha de vegetação através da janela e o Zé Manel diz ter a sorte de morar numa zona de Alvalade com um jardinzinho. Enquanto bebe um café com leite e come um croissant com fiambre, explica que nestes dias de confinamento dá de vez em quando uns passeios higiénicos pelo bairro lisboeta com o neto Henrique e navega muito no Facebook, onde tem descoberto picoenses. "Fui conhecendo muita gente lá da minha ilha. Entre eles um grande escritor, que merece atenção, pois te uma obra belíssima, o poeta Urbano Bettencourt.".Conhecido também por ser sobrinho de Maria Barroso, e logo de Mário Soares, pergunto ao Zé Manel como é que alguém com raízes no Algarve nasce numa ilha açoriana. "O meu pai, que era advogado, foi colocado como notário no Pico, mais tarde em Mourão e a seguir em Monchique. Acabou por vir para o Barreiro, mas então eu já vivia em Lisboa. Desde os 15 anos andava no Colégio Moderno, dos meus tios.".Os anos no Colégio Moderno, fundado por João Soares, ministro da Primeira República e pai de Mário Soares, marcaram a formação do futuro jornalista. Álvaro Cunhal foi ali regente de sala de estudos.."Desde os 16 anos, eu era militante do Partido Comunista. Quando fui para a universidade, para o ISEG, elegeram-me presidente da associação de estudantes de económicas. E aí começaram os problemas, porque o governo não homologou e mandaram-me para a tropa. Tinha uns 21 ou 22 anos. Aos dirigentes universitários que tinham ficha política era mandá-los para a tropa, como forma de degredo", diz, entre risos. Hoje sabe que ser sobrinho de Soares, advogado que viria a fundar o PS, lhe garantiu a atenção da PIDE..O destino foi a Madeira, e não se deu mal por lá. Mesmo na tropa, teve o primeiro contacto com o jornalismo e até se casou. "Depois de fazer a minha especialidade em Cascais, em artilharia antiaérea, fui para lá. A Madeira era um mundo à parte, uma ilha com uma história rica de resistência ao salazarismo. Em certa altura salientei-me porque ia aos debates e conheci um grupo de gente da minha idade, onde estava o Vicente Jorge Silva, e um dia apareceu a oportunidade de alugar o título de um jornal, o Comércio, e começámos a fazer um jornal por brincadeira", relembra. A família proprietária do Comércio do Funchal, que editava apenas um número por ano para manter o título, aceitou entregá-lo ao Zé Manuel e a Vicente Jorge Silva, futuro fundador do Público. Foi uma aventura: "Eu assinava José Manuel Barroso nas coisas que não envolviam política, como o desporto. Tinha uns seis pseudónimos, para fingir haver muitos colaboradores. De início não éramos muito vigiados. Na altura, eu era o tipo mais politizado do grupo. Vinha das lutas académicas. O Vicente, que era a coluna da equipa, escrevia basicamente sobre cinema. Como defendíamos a autonomia, éramos olhados com simpatia até pelos gajos da situação. Quando começamos a ter êxito no continente, então aí o regime olhou para nós.".Na Madeira, fez três anos dos quatro do serviço militar. Depois casou-se com uma madeirense, "que é a mãe da minha filha Maria Ana. Ela era advogada e fiquei lá mais um ano, já civil". Foi nessa época que deixou o PCP. "Eu era um comunista especial, muito aberto, muito rebelde, não gostava de receber ordens e fazia perguntas incómodas.".Cá do meu lado do computador bebo um nespresso e como o croissant comprado na Eric Kayser das Torres de Lisboa, terceira sede do DN em 156 anos. Conheço por conversas antigas a ligação de Zé Manel ao general António de Spínola, depois do 25 de Abril presidente e marechal, e peço que conte como foi a ida para a Guiné de um civil que já trabalhava em Lisboa no República.."Escasseavam capitães e então começaram a chamar os alferes que não tinham ido ao ultramar. Estive dois anos fora da tropa e fui chamado para Mafra. E sou mobilizado para a Guiné. Fui para Bissau no mesmo avião e lado a lado com o Carlos Matos Gomes. Somos amigos desde essa viagem. Foi um dos condecorados agora. Desde Jorge Sampaio que não havia condecorações aos militares de Abril. Marcelo Rebelo de Sousa não quis terminar o primeiro mandato sem reatar essa homenagem", conta Zé Manel..E prossegue: "Estive dois anos na Guiné. A relação com Spínola começou lá. Eu tinha uma ideia horrível do Spínola, como normalmente tinha aqui a esquerda, que o homem era fascista, e quando fui para a Guiné o meu diretor de curso de capitão, uma pessoa extraordinária, o hoje general Pezarat Correia, escreveu ao então major Carlos Fabião "vai aí um que além de ser um bom militar é dos nossos". E então em vez de ir para o mato fui chamado para tratar da área da comunicação com o Spínola.".Foi em julho de 1972 que o então capitão miliciano chegou à Guiné. Portugal e o Futuro seria publicado em fevereiro de 1974, mas a preparação do polémico livro pelo governador começou nessa altura e Zé Manel acompanhou o processo de perto. "Spínola tinha uma visão gaullista do império. Achava que as populações indígenas não estavam ainda preparadas para a independência, mas que era necessário acelerar a autonomia até chegar a uma forma de autodeterminação. Ele defendia uma reforma que propôs ao Marcelo Caetano, que não gostou, que era a criação de um Estado federal. Portanto, Spínola aprendeu antes em Angola, e com os ensinamentos militares das guerras de independência, que a solução política era avançar para a autonomia.".Falamos da Guiné, que conheci já em reportagem para o DN e que mesmo antes das chuvas tem rios enormes, como o Cacheu. A dificuldade da guerra lá, maior do que em Angola ou Moçambique, vinha da geografia, em vários sentidos. "A Guiné era terrível. Um território pequenino. As infiltrações a partir dos vizinhos eram fáceis. Na época de chuvas, os rios ficam mares. Tudo jogava a favor da guerrilha. E Portugal teve problemas sérios, sobretudo depois do aparecimento dos mísseis que a União Soviética forneceu ao PAIGC, pouquinhos mas forneceu, e foram os russos que propuseram, explica..Sobre Spínola, diz Zé Manel, "era um grande chefe militar, um homem com uma integridade pessoal enorme e, em termos de política, um revolucionário dentro do regime. Tudo o que ele propunha era para quebrar com a inércia do regime. Uma vez estávamos a conversar e eu disse-lhe: "Ó meu general, mas o senhor assim vai ser um segundo Delgado a pensar o que pensa." E ele, que não tinha uma grande opinião sobre Humberto Delgado, respondeu: "Não, não, nem pense nisso, no dia em que eu saísse do exército para marcar uma posição política estava liquidado. Isto tem de ser feito a partir de dentro." À volta dele os mais spinolistas diziam "isto só vai à porrada"", recorda, entre risos..No 25 de Abril de 1974, Zé Manel estava na Guiné. Fazia parte da comissão política do MFA. "Tínhamos planeado, se o golpe falhasse em Lisboa, tomar conta da Guiné para chamar a atenção do mundo para o que se estava a passar em Portugal.".Saiu da tropa duas semanas antes do 25 de Novembro de 1975. "Não era militar de carreira, tinha de seguir a minha vida. Fiz sete anos de tropa", justifica. Sobre Ramalho Eanes, o general que seria o primeiro Presidente eleito em democracia, elogia-o, e muito, como a Spínola, mas com diferenças: "Eanes era um homem extremamente reto, íntegro, também crítico do regime de Salazar e Caetano, um homem que era apontado como um exemplo militar. Spínola era valente, tal como Eanes, mas era um homem explosivo, dividiu o mundo em duas partes, os contra ele e os a favor dele. Eanes não. É um homem de pensamento diferente, de coragem mas mais consensualizador.".Sobre o recém-falecido Marcelino da Mata, guineense que se tornou dos mais condecorados do exército português, o antigo capitão miliciano faz um pouco de contextualização. "Tínhamos milhares de efetivos guineenses na tropa portuguesa. Em África, a ideia de nação, de pátria, na altura, não era propriamente uma ideia que entendessem, entendiam mais o lado das raízes étnicas e o lado de quem lhes dava vida melhor. O africano é guerreiro por natureza. E tem uma relação com a morte muito próxima. Daí as carnificinas que vimos em África nas guerras civis pós-independências. O regime não tinha capacidade de completar as vagas do exército e começou a empregar africanos." E prossegue: "As rivalidades étnicas contavam muito. Uma parte da elite do PAIGC eram guineenses de origem cabo-verdiana. Os cabo-verdianos como eram mais preparados tinham mais escola, eram largamente usados na administração colonial. Como guerrilheiros, os balantas foram os mais numerosos. São uma etnia animista, agora muito conquistada pelo islão, rebeldes por natureza, eram um povo nómada, as mulheres cultivavam e tomavam conta dos filhos e eles vagabundeavam à caça. Era uma sociedade muito matriarcal.".Recordo-me de para o DN, no ciclo de golpes e contragolpes que se seguiu à guerra civil guineense de 1998, Zé Manel ter escrito muito sobre a componente étnica do que se estava a passar um quarto século depois da independência. "A Guiné tinha um corpo de milícias formados pelas populações que estavam do nosso lado e lideradas pelos chefes de aldeia, comandadas pelo Fabião, que falava as línguas todas. Um grande militar. E tinha o batalhão de comandos africanos, onde esteve o Matos Gomes e depois o Almeida Bruno e que, à medida que o tempo passava, foi graduando em oficiais os militares negros mais distintos. Foi feito no final um acordo com o PAIGC de que eles passavam à vida civil e não eram molestados, mas não foi cumprido.".E Marcelino da Mata? Insisto. "Era um extraordinário combatente, um tipo com uma enorme capacidade militar e coragem. Foi comando e depois passou a fazer parte de um grupo de operações especiais. É difícil dizer em África que se respeite tudo em termos de deontologia militar. Se for preciso matam-se uns aos outros. Estive em Moçambique, e um taxista, que fora combatente da Frelimo, diz-me esta coisa: "Ó senhor, o que passou aqui na nossa guerra civil não tem nada que ver com o tempo dos portugueses, aquilo foi um horror absoluto. As pessoas matavam-se umas às outras, cortavam narizes e orelhas, incendiavam casas." Não há nenhuma beatitude nas guerras, muito menos em África. Mas Spínola não permitia excessos. Às tropas portuguesa, até por uma razão de guerra psicológica, não lhes era permitido carnificinas. Mas a guerra é a guerra. Chegas a uma tabanca de palhotas, sabes que há guerrilheiros à civil e depois sais e és metralhado...".Quando voltou da Guiné, ainda em 1974, Zé Manel voltou também ao República. O jornalista, que então se assumia como PS, teve como colegas chegados Mário Mesquita, Jaime Gama e Álvaro Guerra. Depois foi para o Jornal Novo e daí para o Primeiro de Janeiro, neste caso para diretor. "Era o jornal mais prestigiado do norte, mas já decadente, o único do Porto não nacionalizado, por isso não teve apoio financeiro. Guerras políticas eram muitas. O PCP tentou influenciar através da tipografia, mas os donos entregaram o jornal ao CDS.".O DN é o destino seguinte de Zé Manel. A chefia da redação no Porto. E depois a vinda para Lisboa, para a sede na Avenida da Liberdade, como grande repórter. Estamos em 1992 e é quando, estagiário, conheço Zé Manel. "Foi o período mais feliz profissionalmente da minha vida. Assinei trabalhos sobre a Guiné, também uma série sobre as histórias desconhecidas do 25 de Abril, com as quais ganhei o prémio de jornalismo desse ano. Saiu em livro porque o Mário Bettencourt Resendes disse: "Isto é importante, vamos fazer um livro." Desse diretor, que admiro muito, afirma: "O Mário era um tipo moderno, de mente aberta, e quando havia algo contra a corrente não se amedrontava.".O próprio Zé Manel chegou a ser diretor interino do DN, em 2004. Recordamos esses tempos épicos, pois eu era subchefe de redação, tal como a indignação bem-humorada da equipa quando, meses antes, Durão Barroso vai liderar a Comissão Europeia e passa a pedir que o tratem por José Manuel Barroso. "Adorei ser diretor. Fiquei tristíssimo quando terminou. Acabo por ir para presidente da Lusa, mas termino a carreira em 2010, de volta ao DN, como o jornalista que sempre fui.".Estamos a chegar ao fim do brunch, que Zé Manel diz que, por ele, "teria sido no Hotel Ritz". Fico a saber que está a acabar um livro sobre o primeiro período da Revolução, do 25 de Abril até ao 28 de Setembro. Diz que é preciso explicar por que Spínola falhou tanto. "Talvez tenha acertado antes do tempo.".Não resisto a perguntar se é verdade que votou em Freitas do Amaral e não em Soares, que acabou por ganhar. "Votei no meu tio para primeiro-ministro quase sempre, com exceção da AD de Sá Carneiro, e em 1986, na primeira volta das presidenciais, votei nele contra Salgado Zenha. Na segunda votei em Freitas porque acreditava na ideia de um governo e um presidente da mesma área política. O meu tio sabia. Não foi fácil para ele aceitar a minha saída do PS, mas a relação acabou por ser calorosa. Ele não era pessoa de rancores", relembra Zé Manel, que neste confinamento por causa da covid-19 descobriu a tentação da poesia, "bem melhor, espero, do que os poemas da adolescência, quando escrevia para impressionar uma miúda mais velha". E ri-se.