Por estes dias, Spike Lee está a desempenhar as funções de presidente do júri oficial da 74.ª edição do Festival de Cannes (a decorrer até ao dia 17). Convidado para a edição de 2020 que, devido à conjuntura pandémica, não se concretizou, manteve o compromisso de, no ano seguinte, satisfazer o apelo do presidente do certame, Pierre Lescure, e do seu delegado geral, Thierry Frémaux. Afinal de contas, Cannes é um lugar essencial na sua trajetória artística e, mais do que isso, na afirmação política do seu trabalho..Podemos mesmo dizer que o nome de Spike Lee começou a ser internacionalmente reconhecido graças a Cannes, mais concretamente, através da Quinzena dos Realizadores. Assim, foi em 1986 que aí apresentou She"s Gotta Have It/Os Bons Amantes, longa-metragem de estreia sobre uma galeria de personagens afro-americanas de Brooklyn (o realizador surgia também como ator, função que repetiria em vários dos seus filmes - é a sua imagem desse filme que está, este ano, no cartaz de Cannes). Aí revelava já um elaborado misto de observação realista e reflexão moral e política, nunca alheado da dimensão sexual dos comportamentos. Como dizia a sinopse original, tratava-se do retrato de "uma mulher e os seus três amantes", com uma frase promocional cujo sabor sarcástico não se desvaneceu: "A seriously sexy comedy"..Cannes foi, por assim dizer, pontuando a sua evolução. Assim, em 1989, Do the Right Thing/Não Dês Bronca esteve na corrida para a Palma de Ouro, mas não obteve qualquer prémio. A desilusão de Spike Lee ter-se-á agravado, dois anos mais tarde, com A Febre da Selva, e tanto mais quanto a visão das vidas dos afro-americanos continuava a ser acompanhada por uma metódica desmontagem dos respetivos estereótipos figurativos e dramáticos. A Febre da Selva é mesmo uma história de amor entre uma mulher branca e um homem negro, facto celebrado pelo enlace das mãos no seu célebre e belíssimo cartaz..Uma coisa é certa: por essa altura, Spike Lee mostrou-se desagradado com os critérios de programação e atribuição de prémios em Cannes, assumindo o regresso à Quinzena dos Realizadores como um gesto de distanciamento e protesto em relação ao palco oficial do certame (recorde-se que a Quinzena é uma organização da Sociedade de Realizadores de Filmes). Foi em 1999, com o thriller Summer of Sam/Verão Escaldante, título que obteve, aliás, um enorme reconhecimento na Côte d"Azur, com algumas vozes a lamentar a sua não inclusão na seleção oficial..Este ziguezague desembocaria em 2018, com a reconciliação com o festival. Spike Lee apresentou, a concurso, BlacKkKlasman: O Infiltrado, memória tão elaborada quanto perturbante de uma investigação das atividades da organização racista Ku Klux Klan pela polícia do estado do Colorado, nos primeiros anos da décadas de 1970. O filme arrebatou o Grande Prémio, formalmente o "segundo prémio" do certame (a Palma de Ouro foi para Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, do japonês Hirokazu Kore-eda); nos Óscares referentes a 2018 seria distinguido como melhor argumento adaptado..Embora correndo o risco de ser mal interpretado, creio que importa sublinhar um dado elementar: a obra de Spike Lee não pode ser reduzida a um efeito direto do movimento #BlackLivesMatter. E, entenda-se, não apenas por razões cronológicas. Sobretudo porque as suas narrativas estão longe de se esgotar na "ilustração" de um discurso militante ou panfletário, por mais urgente e pertinente que seja esse discurso..Escusado será lembrar que o trabalho de Spike Lee nunca foi indiferente à memória global dos afro-americanos e, nessa medida, à conjuntura social e política das suas histórias. BlacKkKlasman, justamente, serve de exemplo modelar. O filme pode mesmo ser considerado como uma das principais proezas narrativas da sua obra, construindo um calculado ziguezague simbólico entre os anos 70 e as manifestações racistas na América de Donald Trump - o essencial da sua ação (baseada em factos verídicos) ocorre nos anos 70 para, no capítulo final, sermos confrontados com as imagens do carro lançado contra uma manifestação anti-fascista em Charlottesville, Virginia, a 12 de agosto de 2017..O passado nunca se reduz, assim, a uma mera "evocação" mais ou menos arrumada nos anais da história coletiva: o passado emerge como uma conjugação muito particular, dramática e incontornável, do próprio presente. Um dos seus títulos menos vistos (foi o maior falhanço comercial da sua filmografia) pode ajudar-nos a compreender a agilidade temática e emocional, também uma forma de dialéctica política, desse labor criativo. Chama-se Get on the Bus (entre nós lançado como Marcha sobre Washington) e evoca a "Million Man March", manifestação convocada por Louis Farrakhan, líder da Nação do Islão, congregando mais de meio milhão de pessoas em Washington, no dia 16 de outubro de 1995, em protesto contra a degradação social e económica da existência de muitos afro-americanos..Spike Lee concebeu Get on the Bus, não apenas como uma revisitação dos factos, mas também uma forma (cinematográfica) de rever, reavaliar e, de alguma maneira, prolongar o seu impacto. O filme foi mesmo apresentado como uma verdadeira efeméride, contaminada por uma genuína urgência simbólica - a sua estreia nas salas dos EUA ocorreu a 16 de outubro de 1996, exatamente um ano depois da manifestação..A riqueza temática da sua obra não decorre, assim, de uma representação genérica e unanimista seja do que for. Por um lado, ele é uma voz cristalina na defesa dos direitos dos afro-americanos; este ano em Cannes, na conferência de imprensa de apresentação do júri, evocando Do the Right Thing e os muitos ataques de que o filme foi alvo (sobretudo na imprensa dos EUA), Spike Lee sublinhou que, face ao linchamento de George Floyd ("rei George Floyd"), somos levados a "pensar e desejar que, trinta e poucos anos mais tarde, as pessoas negras deixem de ser caçadas como se fossem animais". Por outro lado, o seu cinema não encena os afro-americanos (em boa verdade, qualquer grupo humano) como uma entidade uniforme e fechada; as contraditórias personagens de Get on the Bus podem servir de exemplo esclarecedor, tal como o admirável Malcolm X (1992), uma das várias colaborações com o ator Denzel Washington - aí encontramos um complexo retrato de uma figura de enorme força simbólica, não rasurando as convulsões da sua vida, da condição de pequeno gangster de bairro a membro destacado da Nação do Islão..Nada disto pode ser entendido sem lembrarmos que Spike Lee é (também) um verdadeiro homem do espectáculo, em nada alheio às componentes de entertainment da cultura popular americana. A esse propósito, será preciso referir que, no basquetebol, ele é um adepto militante dos New York Knicks?... Sem esquecer essa curiosa "derivação" inglesa que se traduz na sua paixão pela equipa de futebol do Arsenal....O seu fascínio pelo mundo do basquetebol gerou, em particular, aquela que é, a meu ver, uma das obras-primas absolutas da sua filmografia: He Got Game (1998), drama centrado num homem preso (outra brilhante composição de Denzel Washington) na sequência da morte acidental da mulher; ele tenta convencer o filho, talento precoce do basquetebol, a integrar a equipa da sua universidade porque, além do mais, isso pode trazer-lhe uma significativa redução da sua pena... Pormenor triste: He Got Game nunca passou em Portugal..Tudo isso se cruza, aliás, com outras formas de agilidade criativa, incluindo a disponibilidade para as mais diversas estruturas de produção, nomeadamente das novas plataformas de streaming. Para nos ficarmos pelos exemplos mais próximos, lembremos os dois prodigiosos filmes que lançou em 2020: Da 5 Bloods - Irmãos de Armas e David Byrne"s American Utopia. O primeiro, um produto da Netflix, revisita as memórias trágicas de um grupo de soldados afro-americanos na guerra do Vietname; o segundo, com chancela da HBO, é o registo exuberante, de infinita complexidade técnica e estética, do espectáculo conceptual de David Byrne, tendo como base o seu álbum American Utopia..A sua relação com a música é riquíssima e multifacetada, a começar pelo facto de as bandas sonoras de uma significativa percentagem dos seus filmes terem sido compostas pelo grande Terence Blanchard. Em 1996, realizou Girl 6, deliciosa comédia social sobre uma empresa de "telefonemas eróticos" com canções originais de Prince (o papel de chefe das telefonistas estava entregue a Madonna)... outro filme que os distribuidores portugueses não estrearam. Entretanto, em novembro de 2020, soube-se que Spike Lee está mesmo a preparar um musical. O tema, se não é político, será pelo menos pedagógico: a invenção do Viagra.
Por estes dias, Spike Lee está a desempenhar as funções de presidente do júri oficial da 74.ª edição do Festival de Cannes (a decorrer até ao dia 17). Convidado para a edição de 2020 que, devido à conjuntura pandémica, não se concretizou, manteve o compromisso de, no ano seguinte, satisfazer o apelo do presidente do certame, Pierre Lescure, e do seu delegado geral, Thierry Frémaux. Afinal de contas, Cannes é um lugar essencial na sua trajetória artística e, mais do que isso, na afirmação política do seu trabalho..Podemos mesmo dizer que o nome de Spike Lee começou a ser internacionalmente reconhecido graças a Cannes, mais concretamente, através da Quinzena dos Realizadores. Assim, foi em 1986 que aí apresentou She"s Gotta Have It/Os Bons Amantes, longa-metragem de estreia sobre uma galeria de personagens afro-americanas de Brooklyn (o realizador surgia também como ator, função que repetiria em vários dos seus filmes - é a sua imagem desse filme que está, este ano, no cartaz de Cannes). Aí revelava já um elaborado misto de observação realista e reflexão moral e política, nunca alheado da dimensão sexual dos comportamentos. Como dizia a sinopse original, tratava-se do retrato de "uma mulher e os seus três amantes", com uma frase promocional cujo sabor sarcástico não se desvaneceu: "A seriously sexy comedy"..Cannes foi, por assim dizer, pontuando a sua evolução. Assim, em 1989, Do the Right Thing/Não Dês Bronca esteve na corrida para a Palma de Ouro, mas não obteve qualquer prémio. A desilusão de Spike Lee ter-se-á agravado, dois anos mais tarde, com A Febre da Selva, e tanto mais quanto a visão das vidas dos afro-americanos continuava a ser acompanhada por uma metódica desmontagem dos respetivos estereótipos figurativos e dramáticos. A Febre da Selva é mesmo uma história de amor entre uma mulher branca e um homem negro, facto celebrado pelo enlace das mãos no seu célebre e belíssimo cartaz..Uma coisa é certa: por essa altura, Spike Lee mostrou-se desagradado com os critérios de programação e atribuição de prémios em Cannes, assumindo o regresso à Quinzena dos Realizadores como um gesto de distanciamento e protesto em relação ao palco oficial do certame (recorde-se que a Quinzena é uma organização da Sociedade de Realizadores de Filmes). Foi em 1999, com o thriller Summer of Sam/Verão Escaldante, título que obteve, aliás, um enorme reconhecimento na Côte d"Azur, com algumas vozes a lamentar a sua não inclusão na seleção oficial..Este ziguezague desembocaria em 2018, com a reconciliação com o festival. Spike Lee apresentou, a concurso, BlacKkKlasman: O Infiltrado, memória tão elaborada quanto perturbante de uma investigação das atividades da organização racista Ku Klux Klan pela polícia do estado do Colorado, nos primeiros anos da décadas de 1970. O filme arrebatou o Grande Prémio, formalmente o "segundo prémio" do certame (a Palma de Ouro foi para Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, do japonês Hirokazu Kore-eda); nos Óscares referentes a 2018 seria distinguido como melhor argumento adaptado..Embora correndo o risco de ser mal interpretado, creio que importa sublinhar um dado elementar: a obra de Spike Lee não pode ser reduzida a um efeito direto do movimento #BlackLivesMatter. E, entenda-se, não apenas por razões cronológicas. Sobretudo porque as suas narrativas estão longe de se esgotar na "ilustração" de um discurso militante ou panfletário, por mais urgente e pertinente que seja esse discurso..Escusado será lembrar que o trabalho de Spike Lee nunca foi indiferente à memória global dos afro-americanos e, nessa medida, à conjuntura social e política das suas histórias. BlacKkKlasman, justamente, serve de exemplo modelar. O filme pode mesmo ser considerado como uma das principais proezas narrativas da sua obra, construindo um calculado ziguezague simbólico entre os anos 70 e as manifestações racistas na América de Donald Trump - o essencial da sua ação (baseada em factos verídicos) ocorre nos anos 70 para, no capítulo final, sermos confrontados com as imagens do carro lançado contra uma manifestação anti-fascista em Charlottesville, Virginia, a 12 de agosto de 2017..O passado nunca se reduz, assim, a uma mera "evocação" mais ou menos arrumada nos anais da história coletiva: o passado emerge como uma conjugação muito particular, dramática e incontornável, do próprio presente. Um dos seus títulos menos vistos (foi o maior falhanço comercial da sua filmografia) pode ajudar-nos a compreender a agilidade temática e emocional, também uma forma de dialéctica política, desse labor criativo. Chama-se Get on the Bus (entre nós lançado como Marcha sobre Washington) e evoca a "Million Man March", manifestação convocada por Louis Farrakhan, líder da Nação do Islão, congregando mais de meio milhão de pessoas em Washington, no dia 16 de outubro de 1995, em protesto contra a degradação social e económica da existência de muitos afro-americanos..Spike Lee concebeu Get on the Bus, não apenas como uma revisitação dos factos, mas também uma forma (cinematográfica) de rever, reavaliar e, de alguma maneira, prolongar o seu impacto. O filme foi mesmo apresentado como uma verdadeira efeméride, contaminada por uma genuína urgência simbólica - a sua estreia nas salas dos EUA ocorreu a 16 de outubro de 1996, exatamente um ano depois da manifestação..A riqueza temática da sua obra não decorre, assim, de uma representação genérica e unanimista seja do que for. Por um lado, ele é uma voz cristalina na defesa dos direitos dos afro-americanos; este ano em Cannes, na conferência de imprensa de apresentação do júri, evocando Do the Right Thing e os muitos ataques de que o filme foi alvo (sobretudo na imprensa dos EUA), Spike Lee sublinhou que, face ao linchamento de George Floyd ("rei George Floyd"), somos levados a "pensar e desejar que, trinta e poucos anos mais tarde, as pessoas negras deixem de ser caçadas como se fossem animais". Por outro lado, o seu cinema não encena os afro-americanos (em boa verdade, qualquer grupo humano) como uma entidade uniforme e fechada; as contraditórias personagens de Get on the Bus podem servir de exemplo esclarecedor, tal como o admirável Malcolm X (1992), uma das várias colaborações com o ator Denzel Washington - aí encontramos um complexo retrato de uma figura de enorme força simbólica, não rasurando as convulsões da sua vida, da condição de pequeno gangster de bairro a membro destacado da Nação do Islão..Nada disto pode ser entendido sem lembrarmos que Spike Lee é (também) um verdadeiro homem do espectáculo, em nada alheio às componentes de entertainment da cultura popular americana. A esse propósito, será preciso referir que, no basquetebol, ele é um adepto militante dos New York Knicks?... Sem esquecer essa curiosa "derivação" inglesa que se traduz na sua paixão pela equipa de futebol do Arsenal....O seu fascínio pelo mundo do basquetebol gerou, em particular, aquela que é, a meu ver, uma das obras-primas absolutas da sua filmografia: He Got Game (1998), drama centrado num homem preso (outra brilhante composição de Denzel Washington) na sequência da morte acidental da mulher; ele tenta convencer o filho, talento precoce do basquetebol, a integrar a equipa da sua universidade porque, além do mais, isso pode trazer-lhe uma significativa redução da sua pena... Pormenor triste: He Got Game nunca passou em Portugal..Tudo isso se cruza, aliás, com outras formas de agilidade criativa, incluindo a disponibilidade para as mais diversas estruturas de produção, nomeadamente das novas plataformas de streaming. Para nos ficarmos pelos exemplos mais próximos, lembremos os dois prodigiosos filmes que lançou em 2020: Da 5 Bloods - Irmãos de Armas e David Byrne"s American Utopia. O primeiro, um produto da Netflix, revisita as memórias trágicas de um grupo de soldados afro-americanos na guerra do Vietname; o segundo, com chancela da HBO, é o registo exuberante, de infinita complexidade técnica e estética, do espectáculo conceptual de David Byrne, tendo como base o seu álbum American Utopia..A sua relação com a música é riquíssima e multifacetada, a começar pelo facto de as bandas sonoras de uma significativa percentagem dos seus filmes terem sido compostas pelo grande Terence Blanchard. Em 1996, realizou Girl 6, deliciosa comédia social sobre uma empresa de "telefonemas eróticos" com canções originais de Prince (o papel de chefe das telefonistas estava entregue a Madonna)... outro filme que os distribuidores portugueses não estrearam. Entretanto, em novembro de 2020, soube-se que Spike Lee está mesmo a preparar um musical. O tema, se não é político, será pelo menos pedagógico: a invenção do Viagra.