Sorrentino fez o seu 'Amarcord'
E eis que o realizador italiano com a mania das grandezas faz (finalmente!) um filme íntimo, caloroso e contido q.b. Isto não quer dizer que o seu toque de extravagância se tenha eclipsado de um momento para o outro, mas porventura pela primeira vez essa extravagância não está ali só para servir uma "robustez" plástica de qualidade publicitária: corresponde a um código emocional. Se Paolo Sorrentino foi cegamente comparado a Federico Fellini por causa de A Grande Beleza - com o devido respeito pelo esforço, é um filme armado ao pingarelho que convenceu meio mundo pela aparência de La Dolce Vita -, agora, sim, chapeau! Parece-nos justo dizer que A Mão de Deus é o seu legítimo título felliniano, um regresso terno e colorido à terra natal, Nápoles, tal como Amarcord fora o regresso de Fellini ao imaginário vívido da sua Rimini, pequena cidade das sensações da adolescência, com os seus rapazes de hormonas aos saltos e mulheres avantajadas.
Em A Mão de Deus, Fabietto (Filippo Scotti, a representar o jovem Sorrentino) encarna essa curiosidade virginal que, logo no prólogo do filme, se materializa na visão do roliço peito descoberto de uma tia infértil, que acredita ter engravidado por obra e graça do fantasma de um santo. O filme vai-se povoando de personagens assim, saídas de uma fantasia napolitana, como a velha baronesa que introduz a educação sexual a Fabietto, o contrabandista risonho com quem trava uma amizade veloz, ou um estouvado realizador, Antonio Capuano (que na realidade foi o mentor de Sorrentino). Mas no centro da primeira parte desta evocação dos anos 1980 em Nápoles estão os pais do protagonista, casal que para o rapaz simboliza uma versão do paraíso na terra. É de resto o pai (Toni Servillo, claro) quem lhe dá a notícia da compra de Diego Maradona pelo Napoli, um acontecimento de natureza surreal a que depois se juntou o mítico golo com a mão - "a mão de Deus" - no Mundial de 1986, e que terá marcado o destino de Sorrentino. Como assim? No dia em os seus pais morreram na casa de férias, para onde era suposto ele ir também, optou por ir ver o Napoli jogar em casa...
A Mão de Deus acaba por ser então uma homenagem a esses pais cuja ausência, que compõe o segundo momento do filme, instigou a procura de uma forma de arte capaz de mexer com o metabolismo da dor. O cinema, bem entendido.
E talvez levado por esta carga pessoal do sentido da perda, Sorrentino alcançou algo que nunca tinha propriamente encaixado na sua ironia grotesca: a sinceridade. Desfazendo-se do brilho excessivo, sem perder o traço vigoroso, o realizador italiano deu substância e alma às suas figuras de estilo, aqui ao serviço de uma criativa expressão de memória autobiográfica. Mais para o final, as vagas semelhanças com outro filme de Fellini, Os Inúteis, confirmam essa fuga para dentro, com um pezinho na nostalgia. Só se lamenta que esta hora feliz da sua filmografia não passe pelas nossas salas de cinema, agora que ele soube aclarar a voz para transmitir algo de genuíno. Com ou sem Maradona, este é o melhor Sorrentino até à data.
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