Somos romanos do século XXI gostem ou não os europeus do norte
Trinidad Nogales, Delfim Leão e Carlos Fabião . Ela é espanhola e diretora do Museu Nacional de Arte Romana de Mérida, eles são portugueses, um professor em Coimbra, o outro em Lisboa, o primeiro, um homem dos estudos clássicos, das leituras em latim, o segundo, um historiador que neste momento está em Ammaia, Marvão, a fazer escavações para descobrirmos um pouco mais sobre o nosso passado romano.
É do saber deles que vive o suplemento 1864 de sábado no DN, dedicado à Lusitânia e que tem como pretexto o início de mais uma temporada do Festival de Teatro Clássico de Mérida, que se inicia no dia 22 na capital da Extremadura, cidade a três horas de carro de Lisboa. E se a Lusitânia província romana pertence ao passado, e se assistir a um espetáculo em Mérida no teatro romano nos faz viajar para trás dois mil anos, a verdade é que dos ensinamentos destes académicos ressalta a importância do legado dos romanos no que é hoje a Península Ibérica, naquilo que como povos são os portugueses e os espanhóis.
Aprendemos nos livros da escola a história de resistência de Viriato, o pastor lusitano que comandou os autóctones na luta contra a máquina de guerra romana. E quando digo aprendemos, refiro-me também aos nossos vizinhos que, pelo menos na zona da raia, consideram Viriato também um dos seus.
Nós portugueses fomos ao ponto de nos assumirmos até como lusitanos, mas a verdade é que, a começar pela língua, o que nós somos mesmo é herdeiros de Roma, uma espécie de romanos do século XXI.
Sim, também por cá passaram os visigodos e os suevos, povos germânicos chegados no ocaso do império (e culpados dele), e os árabes. E, claro, que nos deixaram também heranças. No caso dos últimos, é evidente o contributo para a língua, desde a azeitona e o armazém ao surpreendente oxalá, que os meus amigos marroquinos, aqui tão próximos, reconhecem logo como inshallah, ou assim queira Deus (Alá).
Se dúvidas houvesse, porém, sobre a nossa condição de herdeiros do Império Romano, que veio à Península Ibérica buscar três imperadores (Trajano, Adriano e Teodósio I), basta pensar na proximidade cultural com Espanha e Itália, também com França e a Roménia (os latinos do Oriente, fruto da determinação conquistadora de Trajano sobre a Dácia). E sem grande esforço podemos incluir neste espaço cultural os gregos, o modelo seguido por Roma.
Essa proximidade cultural revela-se de formas simples, desde o beijo e os abraços (na era pré-covid 19), na gastronomia e no culto do vinho, também numa religiosidade partilhada mesmo que cada vez menos presente na sociedade. Mas assume também facetas políticas, basta pensar como no pico da anterior crise económica surgiu a sigla PIGS, das iniciais em inglês de Portugal, Itália, Grécia e Espanha.
A Grã-Bretanha fez parte do Império Romano, tal como partes da Alemanha, como relembra a Porta Nigra em Trier. Mas foi uma romanização incompleta e tornada secundária pelo passar dos séculos. O que explica diferenças que se expressam hoje até na política europeia, na famosa oposição entre frugais (!) do norte e um sul que visto pelos olhos calvinistas só pensa em prazeres, do vinho e outros, como se Baco insistisse em andar por aqui (bem diz Camões n"Os Lusíadas que esse Deus não nos queria bem).
Com as Luzes e a Revolução Industrial, o francês e o inglês passaram a atrair as nossas elites. França, Inglaterra, Estados Unidos, para alguns Alemanha e Rússia, tornaram-se faróis. Mas no fundo, no fundo, nunca ao ponto de ameaçarem a nossa latinidade, mesmo que o ensino do latim esteja em crise e Delfim Leitão alerte que se perde muito com isso.
E quando reivindicamos a nossa adesão ao projeto europeu, a essa solidariedade que ainda agora se se concretizar tornará mais fácil sair da crise da covid-19, vale a pena sublinhar que o Império Romano foi também ele um espaço de livre comércio, de livre trânsito, de paz (em regra) dentro das fronteiras. Por isso, também no DN, o presidente do governo da Extremadura, Guillermo Fernández Vara, escreve que "a história da região da Extremadura não pode ser contada sem se ter em conta o que hoje é Portugal". E a de Portugal sem se falar de Mérida, onde um filho de Salacia, atual Alcácer do Sal, foi figura de grande destaque. Chamava-se Lucius Cornelius Bocchus, e já o chamaram, recentemente, de "lusitano universal".
Como português, parte de um dos povos que levou as línguas filhas do latim mundo fora e tantas influências novas recebeu com os Descobrimentos, também gosto de salientar que com todos os seus defeitos (um deles a escravatura) o Império Romano inovou quando tornou a sua cidadania universal. Algo mais moderno e inspirador é quase impossível.