"Somos judeus a viver entre muçulmanos, mas sobretudo somos todos tunisinos"

Em Djerba, grande ilha do sul da Tunísia, destino turístico popular entre os europeus e que este fim de semana acolhe a Cimeira da Francofonia, existe a mais emblemática comunidade judaica do mundo árabe hoje em dia, reunida em volta do poder simbólico da sinagoga Ghriba, com 2600 anos. O DN conversou com o grande rabino tunisino, Haïm Bittan.
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Reconheço este recanto de Hara Kbira, o bairro judaico de Oumt Souk, por causa do restaurante Brik Ishak, se bem que a minha visita, na véspera, tenha sido ao início da noite e para jantar um dos famosos crepes salgados tunisinos. Agora, manhã bem cedo, nem sinal nas ruas das crianças que brincavam de kippa na cabeça. Mas uma figura ao longe, de telemóvel na mão, acena para o jipe onde viajo com uma tradutora tunisina. É Haïm Bittan, o grande rabino da Tunísia, e lembro-me das longas barbas grisalhas das fotos que vi em várias reportagens que já li sobre ele. "Subam, subam", diz este homem de 74 anos, desde 2004 à frente da última grande comunidade judaica no mundo árabe, pois só os 1500 judeus de Casablanca, megacidade marroquina, ultrapassam em número os 1100 aqui em Djerba, quase todos a viver neste bairro de Oumt Souk, não muito longe da mítica sinagoga Ghriba, com 2600 anos, segundo a tradição.

Um lance de escadas exterior dá acesso a uma pequena sinagoga no meio do casario branco e azul, típico da ilha de Djerba, sejam judeus ou muçulmanos os habitantes. E junto da sala para oração, existe uma biblioteca, com uma mesa que serve para reuniões. "Quando me perguntam onde estudei no estrangeiro para ser rabino, digo para olharem à volta", e abre os braços, a chamar a atenção para os muitos livros nas estantes, também sobre a mesa, alguns empilhados até num escadote aberto. "Sempre tivemos muitos sábios em Djerba, estudiosos do judaísmo. Não precisei de ir para fora", acrescenta, falando em árabe, a língua da comunidade no quotidiano, até porque vivem lado a lado com os tunisinos muçulmanos, se bem que saibam o hebraico, para fins religiosos. As crianças judias, como as que vi a brincar junto ao Brik Ishak, frequentam todas a escola pública tunisina e depois têm aulas extras de religião na yeshiva, a escola religiosa, e nesse caso com rapazes e raparigas separados.

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Conta o grande rabino que na Tunísia há hoje 1500 judeus, uma pequena parte deles fora de Djerba, sobretudo em Tunis, e os restantes aqui, divididos entre Hara Kbira e a aldeia de Hara Seghira (também conhecida como er-Riadh), onde fica a Ghriba. "Foi construída a partir de uma pedra do templo de Jerusalém, trazida por judeus que escaparam à invasão pelos babilónios", relata Haïm Bittan, com Isslem Jerbi, diretora de marketing da DMO de Jerba, organização de promoção do turismo, a traduzir do francês, num encontro difícil de conseguir e que contou com a ajuda de telefonemas até para René Trabelsi, um empresário nascido em Djerba que entre 2018 e 2020 foi ministro do Turismo, símbolo também ele de integração.

Conversamos sobre a ameaça que é para a sobrevivência da comunidade a tentação da emigração dos jovens para França (antigo colonizador, onde vivem 700 mil judeus e que chegou a ter o tunisino Joseph Sitrouk como grande rabino) ou para Israel, mas Haïm Bittan desvaloriza, diz que os piores tempos já passaram: "há quem vá para a Europa para ser cozinheiro kosher, que é um trabalho muito bem pago pois pouca gente o sabe fazer como nós aqui. Mas depois de ganhar dinheiro voltam". Para o otimismo sobre o futuro do judaísmo na ilha conta também a elevada taxa de natalidade na comunidade. "Cada família tem no mínimo seis filhos, e às vezes mais de dez", diz, entre risos, o grande rabino, ele próprio pai de oito.

Mais de cem mil em 1948, quando a criação do moderno Israel causou uma onda de choque no mundo árabe, os judeus são hoje uma ínfima minoria dos 12 milhões de habitantes da Tunísia, mas um orgulho do país, como símbolo de uma identidade nacional que desde a independência em 1956, decretada por Habib Bourguiba, se pretende acima da pertença religiosa.

Para a Tunísia democrática pós-2011, a vitalidade da comunidade judaica é também um ponto de honra, sempre tentando separar a questão do judaísmo de Israel, pois tradicionalmente Tunis defende com ardor a causa nacional palestiniana e até já foi sede da OLP. Ainda há um ano, depois de rumores de ter culpado os judeus pela agitação no país, o presidente Kaïs Saïed fez questão de telefonar ao grande rabino para desmentir e reafirmar que os judeus tunisinos são cidadãos de pleno direito e que "beneficiam da mesma proteção do Estado que todos os outros cidadãos tunisinos".

A sinagoga da Ghriba tem blocos de cimento (pintados de branco, para os amenizar) junto à entrada principal, uma defesa contra eventuais ataques terroristas como o de abril de 2002, que causou 20 mortos, na maioria turistas alemães. Foi um dos primeiros atentados jihadistas logo a seguir ao 11 de Setembro e também foi reivindicado pela Al-Qaeda. Moncef Marzouki, presidente já em democracia, organizou no décimo aniversário em 2012 uma homenagem às vítimas, repudiando os atos terroristas em nome da sociedade tunisina. No momento do atentado, ainda na era Ben Ali, chegou a ser levantada a hipótese de explosão acidental, mas seria afastada pelos investigadores alemães.

"Somos judeus a viver entre muçulmanos, mas sobretudo somos todos tunisinos. Esta é a nossa terra", afirma Haïm Bittan, relembrando a antiguidade da Ghriba e da peregrinação que acontece em maio. "Nessa altura hotéis e restaurantes oferecem comida kosher e é possível entrar na Tunísia com passaporte israelita, acrescenta. Mas sobretudo são franco-tunisinos os visitantes,

Visitei a Ghriba antes do encontro com o grande rabino. De novo, as cores azuis sobre as paredes caiadas de branco, tal como nas inúmeras mesquitas da ilha, mostram como o judaísmo faz parte da história de Djerba. Um antigo caravançarai, onde hoje se faz o essencial da festa durante a peregrinação, surge do lado direito de quem entra. E à esquerda está a sinagoga propriamente dita, com a sala de orações a ter uma arquitetura mourisca. Ponho uma kippa preta recém-comprada e percorro em silêncio um local de culto tão antigo que coexistiu com as eras berbere, cartaginesa, romana, vândala (efémera), bizantina, árabe, espanhola (efémera também, mas que deixou em Djerba o chamado Forte Espanhol), turca e francesa. Há turistas estrangeiros a visitá-la e ao contrário do que acontecia até 2014 também se aventuram agora em er-Riadh, pois a aldeia tornou-se um museu ao ar livre de Street Art. O belga Gérard Gridelet, do Dar-Bibine, o pequeno hotel onde fiquei de início em Djerba, é um apaixonado pela ilha e pela tradição de tolerância religiosa que se mantém. Foi ele quem me levou ao Brik Ishak, e também quem fez a primeira tentativa de arranjar um encontro com o grande rabino. O seu hotel é a soma de duas casas judaicas, que mantêm grande parte da traça original. Não é caso único de europeu que se sente tão bem em Djerba que decidem fixar-se na ilha. Mostra-me entusiasmado um mural onde se vê desenhado um judeu e dois vasos encostados, um escrito em árabe e o outro em hebraico, simbolizando a coexistência que era regra durante séculos mas que cada guerra israelo-árabe foi desaparecendo mais e mais.

Para se perceber como a comunidade judaica da Tunísia é hoje uma raridade, recordo que a notícia de setembro da morte do líder da comunidade judaica na Síria, Albert Kamoo, que vivia em Damasco. Só restam quatro judeus sírios, todos com mais de 60 anos. A comunidade, não só em Damasco mas também cidades como Alepo, chegou a ser de 200 mil, e era de 250 pessoas quando começou a guerra na Síria em 2011. O grande rabino tunisino conhece as histórias de desaparecimento de comunidades, mas acredita que na Tunísia será diferente.

Houcine Tobji, fundador do Museu de Guellala, tem uma explicação histórica para a força da implantação do judaísmo em Djerba, que não é só por causa da antiguidade. "Os ibaditas, uma minoria no islão mas maioria em Djerba, tradicionalmente associaram os judeus à sua resistência aos que os atacavam de fora. Uns e outros têm origem nos berberes que foram os primeiros habitantes da ilha. Por um lado, governados por sábios, os ibaditas foram assim fiéis ao dito de não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. E esta coexistência religiosa pôs os judeus a ajudá-los, e os judeus eram muito bons forjadores de armas, também muito bons pedreiros a ajudar nas fortificações", sublinha o historiador tunisino.

leonidio.ferreira@dn.pt

DN viajou a convite da Embaixada da Tunísia

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