Somente um tigre (fim)
"Um tigre não tem amigos. É demasiado perigoso."
Aravind Adiga
Cinco longos anos.
Não apareceu nem foi visto, ninguém soube dele.
Hibernou num covil dourado, a casa de Nova Iorque, no Upper West Side. No início dos anos 1960, comprara esse edifício singular, um templo da Igreja Ortodoxa, de cinco andares, que restaurou a fundo e adaptou ao seu gosto. Na cave, mandou construir um ginásio (o tigre era dado à prática do boxe, como é óbvio). Ao lado, uma sala de música equipada a rigor, onde podia compor e tocar com os amigos sem incomodar a família, Frances e as crianças, a morar no andar de cima. Os dois últimos pisos foram arrendados, mas não por muito tempo.
O passeio fronteiro à casa chama-se hoje Miles Davis Way e, quando ele morreu, o prédio foi dividido em seis apartamentos, vendidos a preços milionários. Miles viveu aí o seu período mais negro, em confinamento total.
Chegara ao início da década de 1970 com feridas fundas por cicatrizar, mas também com uma fama e uma fortuna pouco habituais no meio jazzístico. Desde há muito que os seus concertos eram seguidos por várias estrelas, de Paul Newman a Steve McQueen, passando por Marilyn Monroe ou Marlon Brando. Também ele era, por direito próprio, uma estrela cintilante, conhecida mesmo pelos que nunca ouviram uma só nota das suas músicas. Dera uma entrevista retumbante e cáustica à Playboy, a primeira grande entrevista que a Playboy publicou, concebera Kind of Blue, o disco de jazz mais vendido de todos os tempos, tocava com os músicos dos mais variados géneros, esteve casado com duas mulheres lindíssimas, Frances, uma escultural bailarina da Broadway, e Betty Mabry, uma modelo e música de 23 anos, que lhe renovou o visual e o repertório. Na garagem, acumulavam-se os carros topo de gama, Lamborghinis, Porsches, Ferraris.
Em termos criativos, nunca parou. Do seu grupo saíam Herbie Hancock e Ron Carter, entravam Chick Corea e David Holland para os substituir. E, com presença mais flutuante, John McLaughlin à guitarra e Wayne Shorter no saxofone. Sempre os melhores, portanto. Aos poucos, rompeu as barreiras do seu meio, deixou de tocar e de aparecer tão amiúde nos clubes tradicionais de jazz. Aproximou-se do rock, ensaiou outros géneros, fusões imprevistas com Carlos Santana, com os Grateful Dead, com Laura Nyro, com a Steve Miller Band.
Clive Davis, o patrão da Columbia, a etiqueta de Miles na altura, apoiava com entusiasmo essas transgressões do tigre, a quem os mais puristas ainda hoje não perdoam ter integrado no seu repertório, anos depois, uma canção de Cindy Lauper (Time After Time, no álbum You're Under Arrest, de 1985) e outra de Michael Jackson (Human Nature no mesmo disco) e, pior ainda, de as ter incluído, desde então, no elenco da esmagadora maioria das suas actuações ao vivo, até aquela que ainda hoje permanece na memória dos afortunados que, em Abril de 1989, estiveram no Coliseu dos Recreios de Lisboa.
Esquecem-se os críticos, ou talvez não, de que Miles sempre buscou fontes de inspiração muito para lá do universo do jazz e que muito cedo começou a tocar músicas de outros géneros, desde o adagio do Concierto de Aranjuez, com Gil Evans, em Sketches of Spain, de 1960, a Someday My Prince Will Come, do álbum com o mesmo nome, um tema provindo do clássico dos clássicos da Disney Branca de Neve e os Sete Anões.
Miles iniciava a década de 1970 com um disco revolucionário e provocador (até no título), Bitches Brew. Se o álbum anterior, In a Silent Way, de 1969, fora uma obra consensual e de continuidade, Bitches Brew é de violência e paixão, em que o som e a fúria da guitarra e do piano eléctricos, e não só, marcam um claro desejo de ruptura e de afronta, com orgulhoso desdém, às convenções do jazz e - porque não dizê-lo? - ao snobismo insuportável dos que se tomam seus guardiães. Nesses, Bitches Brew causou escândalo, ao inaugurar o avant-funk ou prenunciar o jazz-rock, com laivos psicadélicos ao gosto da época (sim, nem mesmo Miles é perfeito). O que foi e o que é o funk, e até o rap, muito deve a este disco, mais do que por vezes julgam.
O novo decénio principiou, assim, sob os melhores augúrios. Miles agitara as águas com um sucesso comercial, conseguindo o pleno da arte e do dinheiro, aqueles que, de uma forma ou doutra, sempre foram os seus dois grandes objectivos na música e na vida. Além disso, a abertura ao rock granjeara-lhe novas e insuspeitas audiências. No Festival Pop da Ilha de Wight, em 1971, tocou para uma multidão de meio milhão de espectadores, uma experiência quase mística, absolutamente ímpar na sua carreira.
O guarda-roupa reflectia a opulência desta etapa, com as vestes de inspiração étnica compradas em lojas de autor de Greenwich Village a ser substituídas por casacos de peles, casacos e calças de couros, blusões agressivos, óculos escuros gigantescos, do tamanho de girassóis.
Em Outubro de 1972, Miles Davis teve um violento acidente de automóvel quando adormeceu ao volante do seu esfuziante Lamborghini verde-lima na West Side Highway, em Nova Iorque. Noutras versões, o músico terá tentado atravessar três faixas dessa via rápida a uma velocidade estonteante, acabando por embater numa das protecções laterais. O desastre provoca-lhe fracturas nos tornozelos, entre outras lesões, e, para aplacar as dores lancinantes, Miles recorre a um cocktail explosivo de álcool, analgésicos e cocaína. Foi então que, segundo recordará anos depois, "as coisas começaram a baralhar-se". É preso diversas vezes por posse de drogas, envolve-se em escaramuças com traficantes, chega a receber ameaças da máfia.
No plano sentimental, o casamento com Betty Mabry terminara ao fim de pouco mais de um ano, com discussões constantes e Miles a acusá-la de o ter atraiçoado com Jimi Hendrix, mas obviamente não referindo o affaire que ele próprio iniciara entretanto com Marguerite Eskridge, uma jovem de 24 anos que será a mãe do seu quarto e último filho, Erin, nascido em 1970. Miles encontrava-se na companhia de Marguerite quando, na noite de 9 de Outubro de 1969, foi alvejado por cinco tiros, disparados a partir de um automóvel a alta velocidade cujos ocupantes nunca seriam identificados. O músico sofre apenas ferimentos ligeiros, Marguerite sai ilesa, mas ambos acabam detidos por posse de marijuana.
A queixa seria arquivada, mas este foi, entre tantos outros, um sinal de que Miles Davis III estava a viver muito para lá dos limites. Apesar de curado há anos do vício da heroína, a droga torna-se uma presença cada vez mais assídua na sua vida e, ao que parece, foi a causa da separação de Marguerite Eskridge, uma mulher de ascendência índia e cultora dos remédios e dos tratamentos naturais, que muito fez pela saúde do músico.
O seu estado físico, de facto, inspirava os maiores cuidados: cálculos biliares; complicações diversas decorrentes da anemia falciforme; uma infecção numa perna por se ter injectado com uma agulha suja, chegando a pensar-se na sua amputação; várias operações à anca; os tornozelos fracturados no desastre de automóvel de finais de 1972, rumores de um cancro na garganta e de tratamentos por quimioterapia. A isto juntava-se o consumo desmesurado de sedativos e drogas, à mistura com muito vinho tinto, e, pior do que isso, uma psique à beira da desintegração, com alucinações e frequentes acessos de raiva. Proliferavam, inclusive, os ataques violentos, desferidos contra os mais próximos, em especial as suas sucessivas mulheres.
Na sua autobiografia, Miles mostra-se arrependido pelos excessos cometidos nesta "fase negra", mas nunca diz porque decidiu sair de cena em 1975, para só reemergir cinco longos anos depois. Em boa verdade, e ao contrário do que muitas vezes se pensa e se diz, o músico esteve confinado, mas não totalmente afastado do mundo. Em 1978, aliás, tentou um regresso tímido, titubeante: foi a um estúdio tocar órgão, mas a experiência não o entusiasmou nem o convenceu abandonar o trompete. A acontecer, um regresso teria de ser fulgurante, com força e estilo, sem recuos nem receios.
E foi-o. Em silêncio, durante cinco anos, Miles restaurou energias. Contou com a ajuda preciosa de uma mulher, a actriz e antiga modelo Cicely Tyson, que ganhara notoriedade pelo seu desempenho como Rebecca Morgan no filme Sounder, de 1972, que lhe valeu ser nomeada para o Óscar na categoria de melhor actriz (em 2018, receberia um Óscar pela sua carreira). Cicely contactou o compositor Paul Buckmaster, seu antigo namorado, alertando-o para a degradação horrível em que Miles estava mergulhado, intoxicado pela depressão e pelo vício na sua casa do Upper West Side. Buckmaster falou com a irmã do músico, Dorothy Davis, e em conjunto estabeleceram um plano de resgate: ele, Cicely e a cantora Chaka Khan, vizinha no West Side, vão a casa de Miles - e encontram-no a viver numa imundície completa, as janelas semicerradas, uma infestação de baratas.
Cicely foi afastando aos poucos, com infinita paciência, as influências negativas que gravitavam em torno do trompetista, desde vulgares oportunistas a traficantes de droga de médio porte. Miles agradece-lhe na autobiografia, fala dos imensos cuidados que ela tinha com a sua alimentação, dos tratamentos de acupunctura que Cicely promoveu, do modo suave, mas firme, como o retirou dia a dia do álcool e das drogas duras. Casaram-se em 1981, em Malibu, na casa de Bill Cosby. Ao fim de cinco anos, cinco longos anos, Miles Davis começava de novo a ser capaz de pensar em música.
Por um acaso, ou talvez não, um filho de Dorothy Davis, Vincent Wilburn Jr., dava na altura os primeiros passos na sua carreira musical e, pouco a pouco, o tio começou a tocar com o sobrinho. Não por acaso, Vincent surge à bateria em duas faixas do álbum de regresso de Miles, The Man in the Horn, de 1981 (Directions, do mesmo ano, é uma compilação de temas pretéritos). Mal recebido pela crítica e com pouco entusiasmo do público, o disco não foi um comeback estrondoso, longe disso.
Ainda assim - e isso foi o importante -, o tigre regressou de um longo cativeiro, cinco anos de solidão. O seu disco subsequente, We Want Miles, gravado ao vivo a partir dos concertos da sua aclamada digressão mundial, foi um tremendo sucesso, a prova de que Miles Davis estava no caminho certo.
Como sempre, as roupas e o visual foram determinantes nesse percurso. Quando a saúde começou a melhorar, pese alguns sobressaltos de monta, como um AVC sofrido em 1982, Miles aderiu fervorosamente à moda típica dos anos 1980, a que juntou, naturalmente, o seu toque de refinamento e elegância, recorrendo agora a criadores japoneses como Issey Miyake, Kohshin Satoh e Eiko Ishioka. Este último será, aliás, o responsável pelo grafismo de um dos álbuns mais importantes de Miles Davis nesta fase, Tutu, saído em 1986 e que originalmente fora pensado como uma obra em parceria com Prince.
Miles era igual a ele, alcançara um estatuto próximo das vedetas de rock, e era pago como tal nas suas aparições ao vivo. Os puristas não gostaram, evidentemente. Alguns ficaram horrorizados quando o príncipe, o Picasso do Jazz, namoriscou uma carreira de actor, aparecendo em séries ou programas televisivos como Miami Vice ou Saturday Night Live e no filme Dingo, entre outros, além de ter feito diversas bandas sonoras, com destaque para a de Siesta, de 1987.
Apenas no plano sentimental as coisas não melhoraram. O casamento com Cicely Tyson terminou em violento divórcio e Miles, na altura dado às artes plásticas, tentou encontrar a paz junto da sua professora de pintura, a escultora Jo Gelbard, mas nos tempos finais de vida regressou às agressões físicas e à violência, que os mais benévolos atribuem à medicação que tomava na altura, mas que, na realidade, correspondiam a um padrão seu de muitos anos, provavelmente o lado mais negro do tigre, sem dúvida o mais desprezível.
Miles Davis morreria nos braços de Jo Gelbard na noite de 28 de Setembro de 1991. Não é fácil isolar uma causa de morte, tantos eram os males de que padecia, a ponto de, em 1989, o ano em que esteve em Portugal (regressou em 1991), terem circulado rumores de que sofria de sida, o que não era verdade. Miles, se é que isso interessa, morreu do efeito combinado de um acidente vascular, de uma pneumonia e de uma falha respiratória. Foi enterrado com a sua trompete num cemitério do Bronx, não longe da sepultura de Duke Ellington. Descanse em paz, se conseguir.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.